7 de dez. de 2010

Você vai conhecer o homem dos seus sonhos

















Em “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos”, Woody Allen exagera no número de adultérios. O que era apenas um mote em vários de seus filmes anteriores, torna-se um artifício caricatural neste último. Pai, mãe, filha e genro envolvem-se com outras pessoas, cada um à sua maneira, com relacionamentos bem peculiares e um tanto exóticos. O pai se apaixona por uma prostituta que vai corroer sua riqueza. O genro, um escritor fracassado, envolve-se com a vizinha violonista. A filha tenta um flerte com o dono de uma galeria de arte. E a mãe, influenciada por uma cartomante picareta, acaba conseguindo um bom parceiro. Conciliar essa quantidade de histórias pessoais faz do filme um mosaico um tanto difícil de ser trabalhado, o que prejudica o desenrolar da trama. Tudo isso faz do filme um tanto ágil e obrigatoriamente superficial. Mas Woody não se aperta. De novo os diálogos são o ponto forte do diretor e o melhor do filme fica pro final, na definição dos casais, quando ocorrem situações inéditas na filmografia do diretor: desilusão, apostas frustradas, arrependimento. “Você vai conhecer...” é bem inferior ao último filme do diretor (Tudo pode dar certo), mas diverte com inteligência.

1 de dez. de 2010

Saramago Pop Star












 



José Saramago quase morreu antes de morrer. Quando muitos tinham o sumiço do escritor como uma pneumonia controlável, na verdade ele estava agonizando. Mal se ouvia sua voz. Esse difícil momento, ocorrido três anos antes de sua partida definitiva, está retratado no documentário “José e Pilar”, em cartaz nos cinemas. O filme não é um documentário convencional, linear, que aborda a infância, os momentos difíceis pelos quais passou o escritor, a sua vida regrada. O maior mérito do filme é fazer jus ao nome, ou seja, abordar de forma equilibrada a relação do escritor com sua mulher, a jornalista espanhola Pilar.

Saramago teria morrido antes de morrer se não fosse sua esposa. Pilar passou a organizar com “mão de ferro” a vida “administrativa” do escritor, principalmente após a premiação do Nobel. Ela lia, separava e respondia (junto com o escritor) as cerca de 200 cartas que recebiam em casa, na ilha de Lanzarote. Ela também passou a organizar a agenda estafante do escritor, principalmente depois de sua “quase-morte”, antes de morrer.

Para muitos Saramago era uma figura difícil, mau humorada e arrogante (é difícil responder às mesmas perguntas em todo lugar que se vai, convenhamos). Mas o documentário mostra exatamente o contrário: um homem solícito, que relutava em recusar um convite para visitar algum país. Em algumas palestras Saramago chegava a autografar, com surpreendente paciência, mais de mil exemplares. Não foi nada intencional, mas Saramago se tornou “pop star”. Devido a isso, por pouco não morreu antes de morrer. 

29 de set. de 2010

O brilho de Rocinante
















Há inúmeras passagens primorosas em Dom Quixote.  Em uma delas, o nosso herói e seu fiel escudeiro Sancho saem de cena para o brilho do quase inexpressível asno Rocinante.  Em determinado trecho da genial e bem-humorada narrativa de Cervantes, os personagens, exaustos das intermináveis caminhadas, param para uma sesta em uma relva fresca - onde e quando brilharia a figura do cavalo Rocinante:

“Não cuidara Sancho de pôr peias a Rocinante, porque o tinha na conta de tão manso e tão pouco voluptuoso, que nem todas as éguas de Córdova o tinham feito adquirir mau vício. Quis, pois, a sorte e o diabo (que nem sempre dorme), que andasse por aquele vale pascendo uma manda de éguas galegas(...) Sucedeu, pois, que a Rocinante veio o desejo de deleitar-se com as senhoras éguas, e, saindo, assim que as farejou, de seu natural passo e costume, sem pedir licença a seu dono, deu um trotezinho algo brioso e foi participá-las de sua necessidade.”

30 de ago. de 2010

À prova de morte, de Tarantino

















Nenhum cineasta digeriu o pop para o cinema tão bem quanto Quentin Tarantino. Queiramos ou não, somos, ao sair de casa e colocar o pé na rua, abarcados por referências “genéticas” de Duchamp e Andy Wahol. Basta olhar as placas publicitárias, os rumos da arte contemporânea, a moda. Em À prova de morte, Tarantino faz uma conexão dos anos 70 com os dias atuais. A experiência e as referências que o diretor acumulou quando era funcionário de uma locadora nos Estados Unidos estão retratadas no filme. Ao assisti-lo, o espectador tem a sensação de estar vendo um filme de Sessão da Tarde, filmado rusticamente em VHS, com cortes abruptos.  A trama se passa nas estradas americanas, nos tradicionais bares cujas músicas são executadas por vitrolas com fichas (jukebox).


Basicamente, o filme é dividido em duas partes. São duas turmas de mulheres, dispostas a curtir a vida nas estradas americanas, dançando, namorando, consumindo drogas.  O elo entre as duas turmas (e as duas “partes” do filme) é um excêntrico dublê (Kurt Russell, em excelente atuação) de filmes B americanos.  Ele adora velocidade e amedronta as meninas com seu carro turbinado. Seu maior prazer é perseguir as meninas de carro e provocar violentas batidas, com o intuito de matá-las.

Em alguns momentos o filme é puro suspense. Mas o melhor são as perseguições em alta velocidade – explicitamente influenciadas por filmes do gênero dos anos 70, como o Corrida contra o destino e a série Dirty Harry, de Clint Eastwood.  Além disso, o filme tem cenas trash muito bem- humoradas.
 
À prova de morte (2007) é anterior ao Bastardos Inglórios (2009); só agora chegou ao Brasil. Tarantino fez um filme despretensioso, procurando focar mais nas referências cinematográficas da sua adolescência. O longa vai na linha do Pulp fiction, do Assassinos por natureza , Cães de aluguel e  Kill Bill. A grande vantagem de Tarantino é conseguir entreter fazendo um cinema criativo, com referências a vários estilos e épocas do cinema.  O diretor vem, ao longo dos anos, imprimindo um estilo próprio na história do cinema.  Com o perdão do trocadilho, À prova de morte é o mais Tarantino dos filmes de Tarantino.  

25 de ago. de 2010

Eleições Lúdicas











Em tempos de eleição, estas esquinas apostam no prazer estético contra a empulhação e contra o tédio político. Aliás, como se nota por estas páginas, onde há arte não há tédio. Acredito piamente no aperfeiçoamento humano pela estética, que tem forte poder de influência positiva na ética (particular), que, por consequência, afeta também positivamente a política (coletivo). Há de se diminuir a importância política – já amordaçada pela economia globalizada, pelas grandes corporações – e criar um ambiente propício ao prazer estético. Nada como trocar os enfadonhos debates políticos por um bom Bergman, Kubrick, Win Wenders, Woody Allen. Nada como trocar o falatório político nas rádios por Mozart, Bach, Miles Davis, Coltrane. Trocar a perda de tempo com o noticiário político nos jornais impressos por qualquer estrofe de Drummond. Meu voto para presidente nas próximas eleições será em Machado de Assis, por julgar o mais capacitado para entender o homem urbano e ironizar a mediocridade. Para governador, recomendo Guimarães Rosa – tenho esse privilégio por ser mineiro -, um profundo conhecedor da alma humana e do sertão brasileiro, onde pisam os pés descalços dos excluídos. Acredito piamente também que os dois serão partidários do voto facultativo. Somente assim, abrirei uma fresta mínima no meu prazer estético para dar uma espiadela nessa tal de política. 

12 de ago. de 2010

Twitter-contos














Com essa onde de twittar, surgiu um concurso de contos com um limite de 140 caracteres. Eis uma brincadeira com a ideia:

[1]
No carro ouço toda a Nona de Beethoven, mais 10 sonatas de Bach, mais as 4 Estações de Vivaldi. Finalmente, chego no trabalho.

[2]
5 TVs em casa na novela das 8: sala, copa e 3 quartos. Todos desligam e vão pra janela. No prédio em frente, uma TV ligada: novela das 8.

[3]
Ouço jazz em disco de vinil. A música pula na vitrola. Não vejo arranhão no disco, mas um cadáver de uma formiga, atropelada pela agulha.

3 de ago. de 2010

Tudo pode dar certo - ou não.















Já imaginaram um homem, do alto dos seus 70 anos, financeiramente estável, levantar às quatro horas da madrugada para romper com a esposa? E se esse mesmo homem, quebrando todas as convenções sociais, sacudir a vida e alugar um pequeno apartamento no subúrbio de Nova York para viver sozinho com suas manias, ouvindo música clássica? Este homem se chama Bóris e é um professor de física aposentado, mas reconhecido mundialmente. Já tentou de tudo para fugir da monotonia, até suicídio (ele manca devido a isto). Vive andando pelas ruas e conversando com amigos nos cafés da cidade. Neurótico e procurando trazer novos desafios à sua nova vida, dá aulas de xadrez para crianças nas praças. Seu método de ensino: bofetadas na cabeça. Não perdoa nenhum lance errado dos garotos. Chama-os de imbecis sem um mínimo de pudor. Esse impaciente Bóris é a estrela de Tudo pode dar certo (Whatever Works, EUA,2009), filme de Woody Allen.

O velho Bóris, ao voltar para o apartamento numa madrugada, encontra uma garota de 21 anos mendigando em sua porta. Ela mudará sua vida, pois se tornará sua esposa e entrará no “mundo Boris”, repleto de referências culturais. Num belo dia, a mãe da garota, após se separar do marido, chega ao apartamento do casal. Dias depois, chega também o pai da garota, tentando uma reconciliação com a mãe. Mas isso é só o começo. Uma reviravolta na vida de cada um estará por vir. E o velho Bóris, que planejava ficar sozinho, está às voltas com esposa, sogra e sogro no encalço. (Isso é Woody Allen)



A mãe da garota conhece um filósofo, que mostra as fotos caseiras dela a um dono de uma galeria de arte. Eles veem um valor estético nas fotos e a incentivam a investir no mercado de artes. Ela acaba se tornando uma artista plástica de sucesso. O três passam a morar juntos e a dormir na mesma cama, vivendo uma relação não-convencional. Já o pai da garota, ao ser descartado pela agora contemporânea e famosa esposa, conhece um homossexual em um pub. Os dois acabam indo morar juntos. (Isso é Woody Allen).



A vida de Bóris e sua esposa adolescente também dá uma guinada. Seguindo a “ordem natural das coisas”, ela conhece um playboy, apaixona-se e casa com ele. Bóris vê isso tudo passar e, experiente em vida que é, encara tudo como uma comédia humana.  Ele volta a ficar sozinho. Mas no final do filme, o diretor prepara uma surpresa ao espectador.



Tudo pode dar certo é recheado de referências e críticas às sociedades impregnadas de religião e convenções. Sabemos que Woody Allen é mestre em retratar crises conjugais (Manhattan, Maridos e Esposas, Crimes e Pecados). A atitude de Bóris, de largar um casamento estável – mas monótono -, é uma crítica aos que se contentam com uma vida segundo os padrões estabelecidos. Demonstra também que uma vida solitária e feliz é perfeitamente possível. Antes isso era um tabu.



A sensação que se tem ao ver o filme é que “tudo [em relacionamentos] pode dar certo”: um casal convencional, uma amor a três, um amor jovem ou uma relação entre iguais. Mas se isso não ocorrer, que se busque a felicidade – mesmo que sozinho. Além do aspecto conjugal, o diretor também aborda a facilidade com que se produz um “mito” no mundo atual, valendo-se da mídia e do marketing. A velha mãe da garota se torna uma celebridade fashion em poucos dias. Qualquer semelhança com personagens vazias fabricadas por nossas TVs não é mera coincidência. Woody Allen quer, sim, zombar dessa espetacularização promovida pelo mainstream. Bóris rejeita tudo isso, critica a padronização estética nivelada por baixo. Bóris não bate em crianças; bate na mediocridade. A criança imbecil é uma metáfora da sociedade estéril.
  
Woody Allen conseguiu fazer um filme que não cabe em si mesmo. Temos de assisti-lo várias vezes, tamanha a riqueza de detalhes. Cada diálogo é uma pérola, uma referência, um chiste. Caetano Veloso, em entrevista recente, disse que Woody Allen é um cineasta pequeno, limitado e repetitivo. Parece que o diretor ouviu a declaração do baiano lá no norte. Será que o cantor vai sustentar a sua tese depois de Tudo pode dar certo?

20 de jul. de 2010

Ricardo Reis era um bon vivant



Há muito mais do que uma simples classificação ou designação histórica do romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. O autor, como em vários de seus livros, nos brinda com um humor sutil, kafkiano, em várias passagens. Quando o humor não está na situação em si, está presente na própria forma de narrar, na escolha das palavras.


No livro, o médico e poeta Ricardo Reis é um fujão: quando se esboça uma revolução ou comoção social, ele pula pra outra cidade ou país. Fugindo da ditadura Vargas, ele, que vivera 17 anos no Brasil, retorna a Lisboa. Ricardo Reis é um bom vivant. Preguiçoso. Parece querer resolver uma série de pendências para voltar a trabalhar como médico. Mas é pura indolência. Passa os dias se arrumando impecavelmente, se barbeando, para passear pela cidade, ler jornais nos cafés, ir ao teatro.

Ricardo Reis é também uma figura picaresca e atrapalhada. Envolve-se com Lídia, a empregada do hotel onde está hospedado. Mas também envolve-se com Marcenda, uma jovem hóspede que tem um dos braços paralisado. Escapa daqui, escapa dali, Ricardo Reis consegue “administrar” as duas mulheres. Como se não bastasse, recebe frequentemente a visita do fantasma Fernando Pessoa – na maioria das vezes ele aparece de forma inesperada, em momentos inoportunos. Interessante é que Ricardo Reis o trata com impaciência e até com certo desdém.

Há passagens memoráveis no romance que evidenciam o humor sutil de Saramago. Uma das melhores é o momento em que Lídia comunica a Ricardo Reis que está esperando um filho seu. Em um parágrafo, Saramago mostra como o poeta, no seu íntimo, pensa uma coisa e responde outra. E comete o disparate de aproveitar a situação para agarrar a empregada. A narrativa é impagável:

“(...) e aqui não se pode ver mais do que esta mulher calada e séria, criada de profissão, solteira, Lídia, com o seio e o ventre descobertos (...) Não ficou zangado comigo? Que idéia a tua. Porque motivo iria eu zangar-me... E estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis. Meti-me em grande sorrilho, pensa ele, se ela não faz aborto, fico para aqui com um filho às costas (...)

Beijou-a, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão. Mas o corpo animal cura pouco destas sutilezas, daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis, gemendo e suspirando. Não tem importância, agora é que é aproveitar, o menino já está feito."

14 de jul. de 2010

1948 = 1984
















Há sempre o que aprender, a cada momento, a cada leitura, a cada filme. Foi nos extras do filme 1984 que descobri que o ano que dá título ao livro não foi mero exercício futurístico de George Orwell. Foi apenas uma inversão dos números que compõem o ano em que o livro foi escrito: de 1948 para 1984. Este foi o último livro escrito por Orwell.

“1984-Livro” é completo e equilibrado. Não deixa brechas. É considerado um dos livros mais bem-acabados do século passado. Winston Smith tenta fugir das garras do Grande Irmão, uma figura fictícia criada pelo sistema (totalitário) para vigiar as pessoas em todos os lugares, públicos e privados. Os olhos do Grande Irmão estão nas teletelas – uma espécie de tv de plasma – fixadas nas paredes das residências. Smith conspira com sua amante Julia. É traído por um dissimulado amigo e cai nas garras do sistema. Sofre na pele a na mente as consequências de se rebelar contra o que seria um Stálin ou um Hitler, se tivessem obtido êxito. Pena que programetes de TV tenham banalizado o livro de Orwell. Os olhos do Grande Irmão contemporâneo recaem sobre a nossa excessiva exposição - na internet, facebooks, orkuts, etc - e, principalmente, sobre a proliferação de câmeras em locais públicos, pós-11 de setembro.



















“1984-Filme” (de Michael Redford) foi relançado, agora em DVD. É tão bom quanto o livro. Indispensável! Melhor assisti-lo após a leitura do livro, como complemento. Foi lançado justamente em 1984. Os olhos do Grande Irmão no filme são penetrantes e ameaçadores. Uma perfeita retratação de um ditador. O cenário é totalmente à Tarkowski. É como assistir ao Stalker (1979). O drama de Winston no filme é menor do que no livro. Mas ainda assim, arrasador. Difícil não se revoltar com a opressão, com a manipulação de um sistema totalitário perfeito, bem planejado.


1) O diretor MICHAEL RADFORD, assim como Orwell, nasceu na Índia em 1946. Filmou também o Carteiro e o Poeta (1984).


2)GEORGE ORWELL (1903-1950) nasceu na Índia e morreu em Londres. Foi militante socialista. Escreveu também A Revolução dos Bichos (1945).

6 de jul. de 2010

A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos


















O que se poderia esperar de um filme cujo título original é Tulitikkutehtann Tytto? Estranheza, claro. E é tudo o que encontramos, à primeira vista, ao assistirmos ao primoroso (na tradução para o português) A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos. Trata-se, para quem ainda não viu, de um filme finlandês recém-lançado em DVD, do diretor Aki Kaurismaki - o mesmo do excelente O Homem sem Passado. A Garota da Fábrica é estranho por abordar a frieza e a indiferença nas relações humanas na periferia de Helsinque. É um filme duro, seco, com pouquíssimos diálogos. Em pouco mais de uma hora, Kaurismaki narra a história de uma operária de uma fábrica de caixas de fósforos, cuja rotina das máquinas faz de sua vida uma eterna repetição de dias indiferentes.

A garota (não há nomes no filme) garante o sustento dos pais com seu mísero salário. A mãe, uma dona de casa cansada e maltrapilha; o pai, desempregado (ou aposentado), passa os dias fumando num sofá velho, vendo TV. Eles são exigentes; aguardam ansiosamente o dinheiro do trabalho da filha. Ela é um “objeto produtivo” dentro de casa.

Cansada da rotina, a garota comete uma “desmedida” ao sair para tomar um drinque em um pub decadente, onde é flertada por um empresário que a convida para dançar. Os dois vivem um rápido e compulsivo romance naquela noite.

Esperançosa por uma guinada na vida, a garota apresenta o empresário aos pais, que o recebem friamente. Um possível casamento poderia livrá-la da arrogância do pai, talvez um emprego melhor, uma casa mais confortável, uma vida digna. Mas, em um jantar a dois em um restaurante requintado, num clima aparentemente romântico, o empresário a decepciona: “se acredita que há algo entre nós dois, está muito enganada. Nada me encanta tão pouco quanto o seu amor. Agora, deixe-me”. Ela sai imediatamente da mesa, na primeira garfada.

Quando tudo parecia que seria apenas uma desilusão, a garota descobre que está grávida do empresário. Resolve, então, escrever-lhe uma carta pedindo apoio. Dias depois, ela recebe um envelope como resposta: um cheque para bancar um aborto.

A Garota da Fábrica é um retrato de um país cujo clima frio e cinzento parece se interiorizar nas pessoas. O filme mostra o lado melancólico de Helsinque: casas pequenas (quase favelas); na mesa, pão duro, sopa e água; televisores antigos. Não há humor.

O diretor Aki Kaurismaki tem a simplicidade e os silêncios de um Jim Jarmusch. Um pouco de Kieslowski, talvez. Seus filmes retratam o pálido cotidiano de Helsinque de maneira poética. Parte desta secura é atribuída à ausência de trilha sonora em seus filmes. A Garota da Fábrica é um drama impiedoso, sem concessões. O filme explora os limites humanos diante de sucessivas decepções. Quais seriam as conseqüências de uma cena em que a garota entra em uma loja e compra veneno para ratos?

Título: A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos
Direção: Aki Kaurismaki
País: Finlândia / Suécia
Ano: 1990

25 de mai. de 2010

Os quase-livros

Nunca mais ouvi falar do tal escritor. Mas já se passaram alguns anos que eu, na sala de espera da dra. Cristiane, dentista, li em uma velha revista cuja capa fora extraída, uma matéria sobre a descoberta de vários manuscritos de um escritor húngaro, chamado Kovács. Não consegui decorar seu sobrenome e não me perdôo até hoje por não tê-lo anotado em algum papel. Kovács teria morrido no ano de 1919.

Foram descobertos em um baú antigo (daqueles empoeirados, que se vê em filmes como O Nome da Rosa), nos porões de uma mansão, vários cadernos manuscritos que, à primeira vista, comporiam cinco ou seis romances. Diante da descoberta, a Biblioteca Pública de Budapeste se comprometeu a financiar a contratação de professores de literatura e de vários outros especialistas para analisar os manuscritos.

Nunca mais tive notícia sobre o destino dos trabalhos dos especialistas, e muito menos das obras. Mas um detalhe me chamou a atenção. Um respeitado professor de literatura que teve um primeiro contato com os manuscritos, declarou que Kovács se tratava de um escritor excepcional, cuja obra rivalizaria – quiçá superaria – com a de Franz Kafka. Segundo o especialista, o conteúdo daqueles originais, se descobertos e publicados nos anos 20 do século passado, mudaria o rumo de toda a literatura ocidental.

Há exemplos de livros que quase tiveram o mesmo destino, ou seja, quase não existiram (ou só existiram) por obra de terceiros. O exemplo clássico é o de Max Brod, amigo de Kafka, que teria cometido uma “boa desobediência” (para os amantes da literatura) ao não destruir os manuscritos, de anotações ou até de  livros prontos, que  o  escritor  julgava  de  qualidade  duvidosa(!).

Lembro de ter lido em algum lugar que o escritor João Ubaldo Ribeiro, depois de um esforço hercúleo, escrevendo à máquina (em papel ofício e cópia carbono) o calhamaço Viva o Povo Brasileiro, teria rejeitado(!) o livro. Num ato de repulsa ou de perfeccionismo, o escritor jogou as mais de mil páginas datilografadas em uma caixa e deixou-a abandonada em um canto da casa, sujeita a infiltrações e traças. O romance teria sido arrancado à força de suas mãos - literalmente roubado - pelo editor, que o publicou.

Mais recentemente, vimos a quase “não existência” do livro de Nabokov, O Original de Laura. Escrito a lápis em fichas catalográficas, quando o escritor estava internado na Suíça para se tratar de uma infecção, o romance quase não existiu por duas vezes. Na primeira, Nabokov teria orientado a sua esposa a destruir as fichas – coisa que ela não fez. Após a morte desta, ficou nas mãos do filho Dmitri a publicação (ou a destruição) dos manuscritos. Decadente, necessitando de dinheiro para pagar despesas com a saúde debilitada, o filho mandou para o prelo as fichinhas.

O livro 2666, do chileno Roberto Bolaño, teve situação diferente. Houve também, como no caso do João Ubaldo, desobediência por parte do editor. O escritor, sabendo que morreria em decorrência de problemas hepáticos, determinou que o 2666 fosse publicado em cinco partes distintas, em volumes separados, a fim de sustentar a família por um bom tempo. O editor ignorou a vontade de Bolaño e mandou um “tijolo” para as livrarias.

Há casos também de futura inexistência de livros. Mistérios que atiçam desejos de leitores e do famélico marketing das editoras. É o caso do escritor J.D. Salinger, autor do livro O Apanhador no Campo de Centeio, morto em janeiro último. Há especulações de todo gênero; uma das quais a de que o escritor teria deixado, no cofre de sua casa, algumas obras prontinhas para serem publicadas aos poucos, garantido a grana para até a quinta geração dos Salinger. Mas o mistério persiste. Sabe-se que o escritor teria, assim como Raduan Nassar, abandonado a literatura de vez para desfrutar os afazeres de um dia simples. E se, ao abrirem o cofre de Salinger, um vazio escuro e melancólico ecoar lá de dentro?

Obras e, por conseqüência, escritores podem não terem existido por inúmeros motivos. Um empregado de alguma casa que tenha jogado no lixo, inadvertidamente, caixas e mais caixas de manuscritos. Um amigo que, ao contrário de Max Brod, tenha realmente acatado a ordem do escritor e inutilizado sua obra. Esposas ou maridos em crise conjugal que, num rompante, queimaram cadernos do parceiro. Editores que simplesmente rejeitaram obras-primas. Há mil motivos.

Sabemos e temos acesso apenas ao que existe, óbvio. Dante, Cervantes, Balzac, Kafka, Dostoiévski, Proust, Flaubert existiram porque sobreviveram à ação dos “destruidores”, além do inegável talento que tinham, claro. Mas... e se eles não tivessem sido descobertos? O destino da literatura moderna, por exemplo, tão influenciada por Kafka, seria o mesmo? Quantos escritores não “aconteceram”, por inúmeros motivos, mas existiram de fato e escreveram obras importantes que não chegaram até nós?

A dra. Cristiane nunca fez sequer um minúsculo reparo em meus dentes. Tenho ojeriza a revistas sem capa e ensebadas. Detesto sala de espera. A possibilidade de se encontrar uma revista que aborde literatura – e, ainda, húngara!? – em consultórios é remotíssima. Vários Kóvacs poderiam ter existido e, quem sabe, mudariam os rumos da literatura e da sociedade – para melhor ou pior – se tivessem sido publicados. Kafka poderia ter sido superado.


Seria como se, guardadas as devidas proporções, a humanidade não tivesse moldado a razão como ela é (segundo a linha evolutiva dos pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, etc.), mas seguido um outro caminho que não o da racionalidade como a conhecemos e praticamos. Literariamente, somos o que somos devido ao que descobrimos, voluntária ou involuntariamente. Tornamo-nos uma “possibilidade” entre várias. Poderíamos ter sido bem melhores ou bem piores, de acordo com aquilo que sepultamos.