20 de jul. de 2010

Ricardo Reis era um bon vivant



Há muito mais do que uma simples classificação ou designação histórica do romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. O autor, como em vários de seus livros, nos brinda com um humor sutil, kafkiano, em várias passagens. Quando o humor não está na situação em si, está presente na própria forma de narrar, na escolha das palavras.


No livro, o médico e poeta Ricardo Reis é um fujão: quando se esboça uma revolução ou comoção social, ele pula pra outra cidade ou país. Fugindo da ditadura Vargas, ele, que vivera 17 anos no Brasil, retorna a Lisboa. Ricardo Reis é um bom vivant. Preguiçoso. Parece querer resolver uma série de pendências para voltar a trabalhar como médico. Mas é pura indolência. Passa os dias se arrumando impecavelmente, se barbeando, para passear pela cidade, ler jornais nos cafés, ir ao teatro.

Ricardo Reis é também uma figura picaresca e atrapalhada. Envolve-se com Lídia, a empregada do hotel onde está hospedado. Mas também envolve-se com Marcenda, uma jovem hóspede que tem um dos braços paralisado. Escapa daqui, escapa dali, Ricardo Reis consegue “administrar” as duas mulheres. Como se não bastasse, recebe frequentemente a visita do fantasma Fernando Pessoa – na maioria das vezes ele aparece de forma inesperada, em momentos inoportunos. Interessante é que Ricardo Reis o trata com impaciência e até com certo desdém.

Há passagens memoráveis no romance que evidenciam o humor sutil de Saramago. Uma das melhores é o momento em que Lídia comunica a Ricardo Reis que está esperando um filho seu. Em um parágrafo, Saramago mostra como o poeta, no seu íntimo, pensa uma coisa e responde outra. E comete o disparate de aproveitar a situação para agarrar a empregada. A narrativa é impagável:

“(...) e aqui não se pode ver mais do que esta mulher calada e séria, criada de profissão, solteira, Lídia, com o seio e o ventre descobertos (...) Não ficou zangado comigo? Que idéia a tua. Porque motivo iria eu zangar-me... E estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis. Meti-me em grande sorrilho, pensa ele, se ela não faz aborto, fico para aqui com um filho às costas (...)

Beijou-a, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão. Mas o corpo animal cura pouco destas sutilezas, daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis, gemendo e suspirando. Não tem importância, agora é que é aproveitar, o menino já está feito."

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