25 de mai. de 2010

Os quase-livros

Nunca mais ouvi falar do tal escritor. Mas já se passaram alguns anos que eu, na sala de espera da dra. Cristiane, dentista, li em uma velha revista cuja capa fora extraída, uma matéria sobre a descoberta de vários manuscritos de um escritor húngaro, chamado Kovács. Não consegui decorar seu sobrenome e não me perdôo até hoje por não tê-lo anotado em algum papel. Kovács teria morrido no ano de 1919.

Foram descobertos em um baú antigo (daqueles empoeirados, que se vê em filmes como O Nome da Rosa), nos porões de uma mansão, vários cadernos manuscritos que, à primeira vista, comporiam cinco ou seis romances. Diante da descoberta, a Biblioteca Pública de Budapeste se comprometeu a financiar a contratação de professores de literatura e de vários outros especialistas para analisar os manuscritos.

Nunca mais tive notícia sobre o destino dos trabalhos dos especialistas, e muito menos das obras. Mas um detalhe me chamou a atenção. Um respeitado professor de literatura que teve um primeiro contato com os manuscritos, declarou que Kovács se tratava de um escritor excepcional, cuja obra rivalizaria – quiçá superaria – com a de Franz Kafka. Segundo o especialista, o conteúdo daqueles originais, se descobertos e publicados nos anos 20 do século passado, mudaria o rumo de toda a literatura ocidental.

Há exemplos de livros que quase tiveram o mesmo destino, ou seja, quase não existiram (ou só existiram) por obra de terceiros. O exemplo clássico é o de Max Brod, amigo de Kafka, que teria cometido uma “boa desobediência” (para os amantes da literatura) ao não destruir os manuscritos, de anotações ou até de  livros prontos, que  o  escritor  julgava  de  qualidade  duvidosa(!).

Lembro de ter lido em algum lugar que o escritor João Ubaldo Ribeiro, depois de um esforço hercúleo, escrevendo à máquina (em papel ofício e cópia carbono) o calhamaço Viva o Povo Brasileiro, teria rejeitado(!) o livro. Num ato de repulsa ou de perfeccionismo, o escritor jogou as mais de mil páginas datilografadas em uma caixa e deixou-a abandonada em um canto da casa, sujeita a infiltrações e traças. O romance teria sido arrancado à força de suas mãos - literalmente roubado - pelo editor, que o publicou.

Mais recentemente, vimos a quase “não existência” do livro de Nabokov, O Original de Laura. Escrito a lápis em fichas catalográficas, quando o escritor estava internado na Suíça para se tratar de uma infecção, o romance quase não existiu por duas vezes. Na primeira, Nabokov teria orientado a sua esposa a destruir as fichas – coisa que ela não fez. Após a morte desta, ficou nas mãos do filho Dmitri a publicação (ou a destruição) dos manuscritos. Decadente, necessitando de dinheiro para pagar despesas com a saúde debilitada, o filho mandou para o prelo as fichinhas.

O livro 2666, do chileno Roberto Bolaño, teve situação diferente. Houve também, como no caso do João Ubaldo, desobediência por parte do editor. O escritor, sabendo que morreria em decorrência de problemas hepáticos, determinou que o 2666 fosse publicado em cinco partes distintas, em volumes separados, a fim de sustentar a família por um bom tempo. O editor ignorou a vontade de Bolaño e mandou um “tijolo” para as livrarias.

Há casos também de futura inexistência de livros. Mistérios que atiçam desejos de leitores e do famélico marketing das editoras. É o caso do escritor J.D. Salinger, autor do livro O Apanhador no Campo de Centeio, morto em janeiro último. Há especulações de todo gênero; uma das quais a de que o escritor teria deixado, no cofre de sua casa, algumas obras prontinhas para serem publicadas aos poucos, garantido a grana para até a quinta geração dos Salinger. Mas o mistério persiste. Sabe-se que o escritor teria, assim como Raduan Nassar, abandonado a literatura de vez para desfrutar os afazeres de um dia simples. E se, ao abrirem o cofre de Salinger, um vazio escuro e melancólico ecoar lá de dentro?

Obras e, por conseqüência, escritores podem não terem existido por inúmeros motivos. Um empregado de alguma casa que tenha jogado no lixo, inadvertidamente, caixas e mais caixas de manuscritos. Um amigo que, ao contrário de Max Brod, tenha realmente acatado a ordem do escritor e inutilizado sua obra. Esposas ou maridos em crise conjugal que, num rompante, queimaram cadernos do parceiro. Editores que simplesmente rejeitaram obras-primas. Há mil motivos.

Sabemos e temos acesso apenas ao que existe, óbvio. Dante, Cervantes, Balzac, Kafka, Dostoiévski, Proust, Flaubert existiram porque sobreviveram à ação dos “destruidores”, além do inegável talento que tinham, claro. Mas... e se eles não tivessem sido descobertos? O destino da literatura moderna, por exemplo, tão influenciada por Kafka, seria o mesmo? Quantos escritores não “aconteceram”, por inúmeros motivos, mas existiram de fato e escreveram obras importantes que não chegaram até nós?

A dra. Cristiane nunca fez sequer um minúsculo reparo em meus dentes. Tenho ojeriza a revistas sem capa e ensebadas. Detesto sala de espera. A possibilidade de se encontrar uma revista que aborde literatura – e, ainda, húngara!? – em consultórios é remotíssima. Vários Kóvacs poderiam ter existido e, quem sabe, mudariam os rumos da literatura e da sociedade – para melhor ou pior – se tivessem sido publicados. Kafka poderia ter sido superado.


Seria como se, guardadas as devidas proporções, a humanidade não tivesse moldado a razão como ela é (segundo a linha evolutiva dos pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, etc.), mas seguido um outro caminho que não o da racionalidade como a conhecemos e praticamos. Literariamente, somos o que somos devido ao que descobrimos, voluntária ou involuntariamente. Tornamo-nos uma “possibilidade” entre várias. Poderíamos ter sido bem melhores ou bem piores, de acordo com aquilo que sepultamos.

3 comentários:

  1. Os escritores mostram seus textos por causa do ego e se não o fazem é por ego também

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  2. Excelente texto - esclare e questiona. Não só a literatura, mas a própria história de vida também poderia ser outra - com um pouco mais ou menos de sorte, ou com escolhas diferentes.
    Isabel Furini

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  3. Isabel,
    Realmente, andamos pela vida numa corda bamba chamada "acaso".
    Obrigado pela leitura do texto e pelo comentário.

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