3 de ago. de 2010

Tudo pode dar certo - ou não.















Já imaginaram um homem, do alto dos seus 70 anos, financeiramente estável, levantar às quatro horas da madrugada para romper com a esposa? E se esse mesmo homem, quebrando todas as convenções sociais, sacudir a vida e alugar um pequeno apartamento no subúrbio de Nova York para viver sozinho com suas manias, ouvindo música clássica? Este homem se chama Bóris e é um professor de física aposentado, mas reconhecido mundialmente. Já tentou de tudo para fugir da monotonia, até suicídio (ele manca devido a isto). Vive andando pelas ruas e conversando com amigos nos cafés da cidade. Neurótico e procurando trazer novos desafios à sua nova vida, dá aulas de xadrez para crianças nas praças. Seu método de ensino: bofetadas na cabeça. Não perdoa nenhum lance errado dos garotos. Chama-os de imbecis sem um mínimo de pudor. Esse impaciente Bóris é a estrela de Tudo pode dar certo (Whatever Works, EUA,2009), filme de Woody Allen.

O velho Bóris, ao voltar para o apartamento numa madrugada, encontra uma garota de 21 anos mendigando em sua porta. Ela mudará sua vida, pois se tornará sua esposa e entrará no “mundo Boris”, repleto de referências culturais. Num belo dia, a mãe da garota, após se separar do marido, chega ao apartamento do casal. Dias depois, chega também o pai da garota, tentando uma reconciliação com a mãe. Mas isso é só o começo. Uma reviravolta na vida de cada um estará por vir. E o velho Bóris, que planejava ficar sozinho, está às voltas com esposa, sogra e sogro no encalço. (Isso é Woody Allen)



A mãe da garota conhece um filósofo, que mostra as fotos caseiras dela a um dono de uma galeria de arte. Eles veem um valor estético nas fotos e a incentivam a investir no mercado de artes. Ela acaba se tornando uma artista plástica de sucesso. O três passam a morar juntos e a dormir na mesma cama, vivendo uma relação não-convencional. Já o pai da garota, ao ser descartado pela agora contemporânea e famosa esposa, conhece um homossexual em um pub. Os dois acabam indo morar juntos. (Isso é Woody Allen).



A vida de Bóris e sua esposa adolescente também dá uma guinada. Seguindo a “ordem natural das coisas”, ela conhece um playboy, apaixona-se e casa com ele. Bóris vê isso tudo passar e, experiente em vida que é, encara tudo como uma comédia humana.  Ele volta a ficar sozinho. Mas no final do filme, o diretor prepara uma surpresa ao espectador.



Tudo pode dar certo é recheado de referências e críticas às sociedades impregnadas de religião e convenções. Sabemos que Woody Allen é mestre em retratar crises conjugais (Manhattan, Maridos e Esposas, Crimes e Pecados). A atitude de Bóris, de largar um casamento estável – mas monótono -, é uma crítica aos que se contentam com uma vida segundo os padrões estabelecidos. Demonstra também que uma vida solitária e feliz é perfeitamente possível. Antes isso era um tabu.



A sensação que se tem ao ver o filme é que “tudo [em relacionamentos] pode dar certo”: um casal convencional, uma amor a três, um amor jovem ou uma relação entre iguais. Mas se isso não ocorrer, que se busque a felicidade – mesmo que sozinho. Além do aspecto conjugal, o diretor também aborda a facilidade com que se produz um “mito” no mundo atual, valendo-se da mídia e do marketing. A velha mãe da garota se torna uma celebridade fashion em poucos dias. Qualquer semelhança com personagens vazias fabricadas por nossas TVs não é mera coincidência. Woody Allen quer, sim, zombar dessa espetacularização promovida pelo mainstream. Bóris rejeita tudo isso, critica a padronização estética nivelada por baixo. Bóris não bate em crianças; bate na mediocridade. A criança imbecil é uma metáfora da sociedade estéril.
  
Woody Allen conseguiu fazer um filme que não cabe em si mesmo. Temos de assisti-lo várias vezes, tamanha a riqueza de detalhes. Cada diálogo é uma pérola, uma referência, um chiste. Caetano Veloso, em entrevista recente, disse que Woody Allen é um cineasta pequeno, limitado e repetitivo. Parece que o diretor ouviu a declaração do baiano lá no norte. Será que o cantor vai sustentar a sua tese depois de Tudo pode dar certo?

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