23 de dez. de 2009

“Enquanto Agonizo”, de William Faulkner: uma travessia desafiadora ao leitor contemporâneo















Sempre tive medo da cara de carrasco do escritor americano William Faulkner (1897-1962), pois ele me lembra o Stálin. Suas pálpebras cerradas, impiedosas; um olhar sarcástico de ditador. Encarar Faulkner (como escritor) era um desafio duplo: apagar sua imagem de ditador e adentrar em seu universo estranho, seco e intransponível, na visão de muitos críticos. Lá fui eu, com o lápis na mão, digladiar com o Faulkner. Agonizar?

A leitura de “Enquanto agonizo” (1930) é uma experiência ímpar, indispensável para escritores – principalmente pela aula de narrativa – e para os amantes da boa literatura. O livro foi considerado um dos cem melhores romances do século XX. É um delicioso exercício de paciência desvendar o mosaico criado por Faulkner.

Tenho como método de leitura o que eu chamo de “entrar no clima” do livro: leio com vagar as primeiras 40 ou 50 páginas, anotando os nomes dos personagens, seu grau de parentesco, os detalhes da sua personalidade. Após esta etapa, a leitura flui com mais rapidez. Isto muitas vezes me causa transtorno, pois certos romances têm dezenas de personagens. Nestes, atenho-me apenas às figuras mais importantes e constantes. Com a prática a gente vai peneirando a essência. Lembro-me do trabalho que me causou a leitura de “Cem Anos de Solidão”, do Garcia Marques, com aquela infinidade de personagens, em suas várias gerações.

Ocorre que o livro de Faulkner, nas primeiras 30, 40 páginas não tinha “dado liga”. Tive de começar tudo de novo, sem remorso. Livros enigmáticos e complexos são estimulantes. Muitas vezes o desvendamento, a travessia importa mais do que a própria história. “Enquanto agonizo” alia as duas coisas: história e narrativa são impecáveis. Eis uma prática cada vez mais rara na contemporaneidade: o debruçar persistente sobre livros e textos mais herméticos. De clique em clique, de site em site, a velocidade contemporânea vicia e retrai a paciência (será que o pensamento também?). Os constantes debates sobre e-books e (o fim dos) livros desviam do foco o cerne da questão: o ato de ler. A prática da leitura contemplativa e concentrada sim, talvez corra perigo. Já falei isso aqui: talvez a nova geração prefira as imagens e os games à leitura.

Com o perdão da digressão, voltemos. O título “Enquanto agonizo” vem das palavras, ou melhor, do pensamento da mãe (doente terminal), que está no leito de morte olhando fixamente pela janela, enquanto escuta o filho mais velho trabalhar cuidadosamente na feitura do caixão. A família (os Bundren) é pobríssima. Seria fácil se a história fosse narrada assim, clara e linearmente. Mas o leitor tem de suar. A narrativa inicia-se abruptamente num clímax, como se fosse um corte “daqui pra diante”, mas aos poucos vão se revelando as cicatrizes do passado. As idiossincrasias, as agruras e rancores dos personagens vão surgindo aos poucos. Alguém lamenta que uma mulher (ainda não se sabe quem) desistira da compra de uns bolos que foram encomendados. Um dinheiro mísero, mas dado como certo, que auxiliaria aquela família no enterro da mãe. O livro começa assim. 

À primeira vista o romance parece uma narrativa epistolar, mas são relatos isolados;  intui-se pelo vigor das falas: são vozes individuais (versões) de cada personagem a ressoar nos ouvidos do leitor. Cada capítulo leva o nome de um personagem – a maior parte é narrada pelos filhos. A personalidade de cada um é delineada pelo “outro”. Ninguém fala de si próprio; todos são submetidos à criação ora condescendente ora impiedosa do outro. Ninguém tem “direito de defesa”. Faulkner confronta a inquietante relação entre aquilo que “achamos que somos” e o que o “outro vê em nós”.

O grande desafio inicial é identificar a relação entre os narradores. Mas tudo se aclara até a metade do livro, quando já podemos enxergar uma família composta por pai, mãe e cinco filhos – quatro homens e uma mulher (adolescente). Todos narram, mas Faulkner dá a alguns a oportunidade de falar mais do que outros. Descobre-se que o filho mais velho é o verdadeiro líder, pois o pai está desmoralizado pelo passado, pelo desleixo no relacionamento com a mãe; ele é praticamente considerado culpado por sua morte. Curiosamente é o pai quem leva a cabo a promessa de realizar o enterro na cidade de Jefferson, a 70 quilômetros de casa, como desejara a matriarca. Há também um filho que é mais protegido pela mãe - por sua vez o mais temperamental e incongruente. O outro irmão é ainda garoto - nota-se no seu precário discurso. E a filha, adolescente, vive um drama à parte ao esconder uma gravidez indesejada.

Identificados os atores da trama, o foco passa a ser a viagem, o transporte do corpo até Jefferson. A família toda, mesmo sem recursos financeiros, parte em uma carroça caindo aos pedaços e enfrentando intempéries: pontes caindo, cavalos arrastados pela correnteza, incêndios. Como se não bastasse, o filho mais velho quebra a perna, abrindo uma ferida que apodrece com o passar do tempo. O leitor imagina, com o primor da narrativa, o odor da fissura de cor azulada na sua perna (que será amputada após o enterro); imagina também o cheiro do cadáver da mãe, que está há sete dias naquele caixão artesanal.

A viagem põe à prova as agruras da família Bundren ao lidar com a “diferença”. O livro nos faz pensar na possibilidade de uma “convivência comum”, mesmo diante das adversidades e dos limites de cada personagem. Os Bundren seguem vida, mesmo aos trancos e barrancos. “Enquanto agonizo” é um belo retrato da condição dos excluídos, dos que viviam à margem da aristocracia americana no início do século passado. Assim como nos grandes clássicos da literatura que versam sobre a “condição humana”, as semelhanças (idiossincráticas, morais e psicológicas) dos personagens do livro com os que vivem hoje ao nosso redor não são casuais, nem mera coincidência. O “modo de ser” contemporâneo, a maneira de encarar as diferenças é que tem sido distinta. Ao nos depararmos com a arrogância, com certos privilégios, maledicências e imoralidades – só para ficarmos nesses exemplos - tendemos ao isolamento. Talvez isso seja até saudável.

Willian Faulkner não faz concessão ao entretenimento. Há uma sensação de alívio ao terminar a leitura. Não pelo fim do livro, mas pelo trágico da situação, pela penúria psicológica dos Bundren. Em “Enquanto agonizo” não há redenção. O escritor não abandona o leitor após a narrativa. Fico pensando por dias em como se comportarão os irmãos diante da ausência da mãe. Certamente o drama e a pobreza continuarão, pois não há perspectiva de superação material e psicológica dos personagens. Sinto que a travessia da família é uma metáfora da travessia do próprio livro. Uma travessia que desafia a superficialidade e o imediatismo contemporâneo.


(P.S.: Pressinto que a cara de Faulkner sempre vai me assombrar; mas sua narrativa não mais.)

2 de dez. de 2009

Anticristo: sexo como culpa















Sexo e culpa. Ou culpa pelo sexo? O filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, tem esses dois ingredientes como linha mestra. Classificá-lo como “chocante”, “exagerado”, “apelativo”, como vêm fazendo os críticos, é analisar o filme de forma reducionista, ignorando a riqueza de suas intricadas relações, enigmas e símbolos.

Enquanto faz amor de forma intensa, um casal ignora os perigos da autonomia do filho, que consegue descer do berço, abrir a janela e se jogar do alto de um prédio – em uma cena antológica, diga-se de passagem. Com a morte da criança, a mãe entra em estado de luto profundo, tendendo à irreversibilidade e beirando o suicídio. O marido, terapeuta, propõe um tratamento – na verdade um jogo – para tirá-la do abismo. A proposta do esposo é trabalhar com algo que a remetesse ao “medo”, algo que amedrontasse a esposa (uma lembrança, objeto, lugar, etc.). Ela, então, sugere se isolar com o marido em uma casa no meio de uma floresta, onde estivera recentemente com o filho. De forma crescente, o terror começa a tomar conta do casal.

Vários acontecimentos envolvendo elementos simbólicos atormentam a vida dos dois. Contrapondo ao jogo proposto pelo marido, a esposa resgata, no sótão da casa, um material de estudo sobre o que se teria denominado “feminicídio” – inclusive com cadernos, livros e recortes de jornais, contendo agressões e mutilações a mulheres. Somados a isso, há vários símbolos enigmáticos: um animal aparece frequentemente com um filhote recém-nascido, ainda preso ao útero, se arrastando pelo chão (a mãe que não abandona o filho?); um corvo é apedrejado furiosamente pelo marido, mas nunca morre; raízes se entrelaçam aos corpos do casal, enquanto fazem sexo ao pé de uma árvore gigantesca.

O grande mérito de Lars Von Trier é trabalhar com esses ingredientes de forma quase onírica. Os símbolos estão sempre voltando, são recorrentes, como se fossem um aviso – a constância dos símbolos nos faz lembrar os filmes de David Lynch. Por vários momentos o espectador tem a sensação de que aquela imersão sufocante na floresta vai terminar em um corte de cena, no qual o casal pula ofegante da cama, voltando à “segurança urbana”, saindo do “flashback”. Mas a floresta é real, e é chamada de “satanás” (anticristo?). O tratamento proposto pelo marido não surte efeito. A esposa, então, alia-se à floresta, incorporando-a de forma selvagem para se vingar do marido (e seu ineficiente método “anti-luto”). Animais, ventos, plantas e árvores se unem a ela para eliminar “o mal”.

O terror de Lars Von Trier tem nuances poéticas devido à maneira como é tratado; pela sua opção estética. O diretor certamente abandonou o “Dogma 95” - movimento que o projetou nos anos 90, quando realizou filmes de baixo orçamento, mas com extrema inventividade. Sua experiência com efeitos especiais em “Anticristo” é deslumbrante. As cenas inicial e final são afins, carregam um tom azulado de rara beleza, ao som de “Lascia Ch’io Pianga”, ópera de Haendel. As imagens da floresta são onduladas e estonteantes, dando o tom do terror para quem se arrisca a entrar na mata fechada. A ausência de luz (à Tarkowski - a quem o filme é dedicado), mesmo durante o dia, conduz o espectador a uma noite interminável. E há também uma pitada “trash”, nas cenas de mutilações e agressões físicas.

A incursão de Lars Von Trier pelo suspense o reconduz aos trilhos da originalidade dos seus primeiros filmes, e o redime do fraco “O Grande Chefe”(2006). Em “Os Idiotas”(1998), o diretor trata de forma pitoresca e absurda da banalização social. Em “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005), a crueldade humana ganha uma roupagem teatral, cuja força está nos diálogos. Em termos de proximidade, se fizermos algumas concessões, “Anticristo” se aproxima mais do “Dançando no Escuro”(2000), pela dureza impiedosa das situações vividas pelas mulheres nos dois filmes. Se neste, o mote é uma sociedade aniquiladora, que rouba e explora uma inocente, transformando-a em culpada, em “Anticristo” o foco gira em torno da sexualidade, da perda irrecuperável, da vingança.

O filme “Anticristo” é inquietante não por aquilo que choca, mas pelos seus momentos herméticos e perturbadores. Os enigmas não são entregues gratuitamente. Os símbolos recorrentes nos jogam num labirinto de difícil solução. Ninguém sai incólume do cinema. A incursão do espectador naquela floresta é ludibriante e leva-o a pensar por dias nas possibilidades aventadas – ou deixadas em aberto. Muitas insinuações ficarão sem um desfecho (tão solicitado por alguns críticos).

O cinema (como arte) fascina pelas suas desmedidas, pela criatividade, pela busca de soluções estéticas incomuns em meio a tudo o que já foi produzido. Achar uma “brecha original” é tarefa para diretores ousados como Lars Von Trier. De que vale um final “resolvido” depois de uma caminhada como a de “Anticristo”?