23 de dez. de 2009

“Enquanto Agonizo”, de William Faulkner: uma travessia desafiadora ao leitor contemporâneo















Sempre tive medo da cara de carrasco do escritor americano William Faulkner (1897-1962), pois ele me lembra o Stálin. Suas pálpebras cerradas, impiedosas; um olhar sarcástico de ditador. Encarar Faulkner (como escritor) era um desafio duplo: apagar sua imagem de ditador e adentrar em seu universo estranho, seco e intransponível, na visão de muitos críticos. Lá fui eu, com o lápis na mão, digladiar com o Faulkner. Agonizar?

A leitura de “Enquanto agonizo” (1930) é uma experiência ímpar, indispensável para escritores – principalmente pela aula de narrativa – e para os amantes da boa literatura. O livro foi considerado um dos cem melhores romances do século XX. É um delicioso exercício de paciência desvendar o mosaico criado por Faulkner.

Tenho como método de leitura o que eu chamo de “entrar no clima” do livro: leio com vagar as primeiras 40 ou 50 páginas, anotando os nomes dos personagens, seu grau de parentesco, os detalhes da sua personalidade. Após esta etapa, a leitura flui com mais rapidez. Isto muitas vezes me causa transtorno, pois certos romances têm dezenas de personagens. Nestes, atenho-me apenas às figuras mais importantes e constantes. Com a prática a gente vai peneirando a essência. Lembro-me do trabalho que me causou a leitura de “Cem Anos de Solidão”, do Garcia Marques, com aquela infinidade de personagens, em suas várias gerações.

Ocorre que o livro de Faulkner, nas primeiras 30, 40 páginas não tinha “dado liga”. Tive de começar tudo de novo, sem remorso. Livros enigmáticos e complexos são estimulantes. Muitas vezes o desvendamento, a travessia importa mais do que a própria história. “Enquanto agonizo” alia as duas coisas: história e narrativa são impecáveis. Eis uma prática cada vez mais rara na contemporaneidade: o debruçar persistente sobre livros e textos mais herméticos. De clique em clique, de site em site, a velocidade contemporânea vicia e retrai a paciência (será que o pensamento também?). Os constantes debates sobre e-books e (o fim dos) livros desviam do foco o cerne da questão: o ato de ler. A prática da leitura contemplativa e concentrada sim, talvez corra perigo. Já falei isso aqui: talvez a nova geração prefira as imagens e os games à leitura.

Com o perdão da digressão, voltemos. O título “Enquanto agonizo” vem das palavras, ou melhor, do pensamento da mãe (doente terminal), que está no leito de morte olhando fixamente pela janela, enquanto escuta o filho mais velho trabalhar cuidadosamente na feitura do caixão. A família (os Bundren) é pobríssima. Seria fácil se a história fosse narrada assim, clara e linearmente. Mas o leitor tem de suar. A narrativa inicia-se abruptamente num clímax, como se fosse um corte “daqui pra diante”, mas aos poucos vão se revelando as cicatrizes do passado. As idiossincrasias, as agruras e rancores dos personagens vão surgindo aos poucos. Alguém lamenta que uma mulher (ainda não se sabe quem) desistira da compra de uns bolos que foram encomendados. Um dinheiro mísero, mas dado como certo, que auxiliaria aquela família no enterro da mãe. O livro começa assim. 

À primeira vista o romance parece uma narrativa epistolar, mas são relatos isolados;  intui-se pelo vigor das falas: são vozes individuais (versões) de cada personagem a ressoar nos ouvidos do leitor. Cada capítulo leva o nome de um personagem – a maior parte é narrada pelos filhos. A personalidade de cada um é delineada pelo “outro”. Ninguém fala de si próprio; todos são submetidos à criação ora condescendente ora impiedosa do outro. Ninguém tem “direito de defesa”. Faulkner confronta a inquietante relação entre aquilo que “achamos que somos” e o que o “outro vê em nós”.

O grande desafio inicial é identificar a relação entre os narradores. Mas tudo se aclara até a metade do livro, quando já podemos enxergar uma família composta por pai, mãe e cinco filhos – quatro homens e uma mulher (adolescente). Todos narram, mas Faulkner dá a alguns a oportunidade de falar mais do que outros. Descobre-se que o filho mais velho é o verdadeiro líder, pois o pai está desmoralizado pelo passado, pelo desleixo no relacionamento com a mãe; ele é praticamente considerado culpado por sua morte. Curiosamente é o pai quem leva a cabo a promessa de realizar o enterro na cidade de Jefferson, a 70 quilômetros de casa, como desejara a matriarca. Há também um filho que é mais protegido pela mãe - por sua vez o mais temperamental e incongruente. O outro irmão é ainda garoto - nota-se no seu precário discurso. E a filha, adolescente, vive um drama à parte ao esconder uma gravidez indesejada.

Identificados os atores da trama, o foco passa a ser a viagem, o transporte do corpo até Jefferson. A família toda, mesmo sem recursos financeiros, parte em uma carroça caindo aos pedaços e enfrentando intempéries: pontes caindo, cavalos arrastados pela correnteza, incêndios. Como se não bastasse, o filho mais velho quebra a perna, abrindo uma ferida que apodrece com o passar do tempo. O leitor imagina, com o primor da narrativa, o odor da fissura de cor azulada na sua perna (que será amputada após o enterro); imagina também o cheiro do cadáver da mãe, que está há sete dias naquele caixão artesanal.

A viagem põe à prova as agruras da família Bundren ao lidar com a “diferença”. O livro nos faz pensar na possibilidade de uma “convivência comum”, mesmo diante das adversidades e dos limites de cada personagem. Os Bundren seguem vida, mesmo aos trancos e barrancos. “Enquanto agonizo” é um belo retrato da condição dos excluídos, dos que viviam à margem da aristocracia americana no início do século passado. Assim como nos grandes clássicos da literatura que versam sobre a “condição humana”, as semelhanças (idiossincráticas, morais e psicológicas) dos personagens do livro com os que vivem hoje ao nosso redor não são casuais, nem mera coincidência. O “modo de ser” contemporâneo, a maneira de encarar as diferenças é que tem sido distinta. Ao nos depararmos com a arrogância, com certos privilégios, maledicências e imoralidades – só para ficarmos nesses exemplos - tendemos ao isolamento. Talvez isso seja até saudável.

Willian Faulkner não faz concessão ao entretenimento. Há uma sensação de alívio ao terminar a leitura. Não pelo fim do livro, mas pelo trágico da situação, pela penúria psicológica dos Bundren. Em “Enquanto agonizo” não há redenção. O escritor não abandona o leitor após a narrativa. Fico pensando por dias em como se comportarão os irmãos diante da ausência da mãe. Certamente o drama e a pobreza continuarão, pois não há perspectiva de superação material e psicológica dos personagens. Sinto que a travessia da família é uma metáfora da travessia do próprio livro. Uma travessia que desafia a superficialidade e o imediatismo contemporâneo.


(P.S.: Pressinto que a cara de Faulkner sempre vai me assombrar; mas sua narrativa não mais.)

2 de dez. de 2009

Anticristo: sexo como culpa















Sexo e culpa. Ou culpa pelo sexo? O filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, tem esses dois ingredientes como linha mestra. Classificá-lo como “chocante”, “exagerado”, “apelativo”, como vêm fazendo os críticos, é analisar o filme de forma reducionista, ignorando a riqueza de suas intricadas relações, enigmas e símbolos.

Enquanto faz amor de forma intensa, um casal ignora os perigos da autonomia do filho, que consegue descer do berço, abrir a janela e se jogar do alto de um prédio – em uma cena antológica, diga-se de passagem. Com a morte da criança, a mãe entra em estado de luto profundo, tendendo à irreversibilidade e beirando o suicídio. O marido, terapeuta, propõe um tratamento – na verdade um jogo – para tirá-la do abismo. A proposta do esposo é trabalhar com algo que a remetesse ao “medo”, algo que amedrontasse a esposa (uma lembrança, objeto, lugar, etc.). Ela, então, sugere se isolar com o marido em uma casa no meio de uma floresta, onde estivera recentemente com o filho. De forma crescente, o terror começa a tomar conta do casal.

Vários acontecimentos envolvendo elementos simbólicos atormentam a vida dos dois. Contrapondo ao jogo proposto pelo marido, a esposa resgata, no sótão da casa, um material de estudo sobre o que se teria denominado “feminicídio” – inclusive com cadernos, livros e recortes de jornais, contendo agressões e mutilações a mulheres. Somados a isso, há vários símbolos enigmáticos: um animal aparece frequentemente com um filhote recém-nascido, ainda preso ao útero, se arrastando pelo chão (a mãe que não abandona o filho?); um corvo é apedrejado furiosamente pelo marido, mas nunca morre; raízes se entrelaçam aos corpos do casal, enquanto fazem sexo ao pé de uma árvore gigantesca.

O grande mérito de Lars Von Trier é trabalhar com esses ingredientes de forma quase onírica. Os símbolos estão sempre voltando, são recorrentes, como se fossem um aviso – a constância dos símbolos nos faz lembrar os filmes de David Lynch. Por vários momentos o espectador tem a sensação de que aquela imersão sufocante na floresta vai terminar em um corte de cena, no qual o casal pula ofegante da cama, voltando à “segurança urbana”, saindo do “flashback”. Mas a floresta é real, e é chamada de “satanás” (anticristo?). O tratamento proposto pelo marido não surte efeito. A esposa, então, alia-se à floresta, incorporando-a de forma selvagem para se vingar do marido (e seu ineficiente método “anti-luto”). Animais, ventos, plantas e árvores se unem a ela para eliminar “o mal”.

O terror de Lars Von Trier tem nuances poéticas devido à maneira como é tratado; pela sua opção estética. O diretor certamente abandonou o “Dogma 95” - movimento que o projetou nos anos 90, quando realizou filmes de baixo orçamento, mas com extrema inventividade. Sua experiência com efeitos especiais em “Anticristo” é deslumbrante. As cenas inicial e final são afins, carregam um tom azulado de rara beleza, ao som de “Lascia Ch’io Pianga”, ópera de Haendel. As imagens da floresta são onduladas e estonteantes, dando o tom do terror para quem se arrisca a entrar na mata fechada. A ausência de luz (à Tarkowski - a quem o filme é dedicado), mesmo durante o dia, conduz o espectador a uma noite interminável. E há também uma pitada “trash”, nas cenas de mutilações e agressões físicas.

A incursão de Lars Von Trier pelo suspense o reconduz aos trilhos da originalidade dos seus primeiros filmes, e o redime do fraco “O Grande Chefe”(2006). Em “Os Idiotas”(1998), o diretor trata de forma pitoresca e absurda da banalização social. Em “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005), a crueldade humana ganha uma roupagem teatral, cuja força está nos diálogos. Em termos de proximidade, se fizermos algumas concessões, “Anticristo” se aproxima mais do “Dançando no Escuro”(2000), pela dureza impiedosa das situações vividas pelas mulheres nos dois filmes. Se neste, o mote é uma sociedade aniquiladora, que rouba e explora uma inocente, transformando-a em culpada, em “Anticristo” o foco gira em torno da sexualidade, da perda irrecuperável, da vingança.

O filme “Anticristo” é inquietante não por aquilo que choca, mas pelos seus momentos herméticos e perturbadores. Os enigmas não são entregues gratuitamente. Os símbolos recorrentes nos jogam num labirinto de difícil solução. Ninguém sai incólume do cinema. A incursão do espectador naquela floresta é ludibriante e leva-o a pensar por dias nas possibilidades aventadas – ou deixadas em aberto. Muitas insinuações ficarão sem um desfecho (tão solicitado por alguns críticos).

O cinema (como arte) fascina pelas suas desmedidas, pela criatividade, pela busca de soluções estéticas incomuns em meio a tudo o que já foi produzido. Achar uma “brecha original” é tarefa para diretores ousados como Lars Von Trier. De que vale um final “resolvido” depois de uma caminhada como a de “Anticristo”?

13 de nov. de 2009

Murilo Rubião e o chocolate




- Me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
- Moço, oh! Moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
- Está bem moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento...”


Este pequeno trecho, que vale por uns cem livros de Dan Brown, é o começo do conto “Teleco, o coelhinho”, do escritor Murilo Rubião - um dos precursores do realismo fantástico no Brasil.

Por sugestão do amigo Jason, vou relatar um encontro que tive com Rubião, em meados dos anos 70, quando eu era ainda criança. O meu avô Daniel, apesar de não ser uma celebridade, era uma pessoa de certa forma bem relacionada em vários setores da sociedade belo-horizontina. Funcionário público “faz tudo” (estamos nos anos 60 e 70), tinha livre trânsito entre políticos, médicos, advogados, escritores, atores, e na imprensa em geral. Descendente de portugueses (tinha até sotaque d’além-mar), era amante da política. Autodidata, trocava idéias e aconselhava um caminhão de gente que vinha a nossa casa.

Sempre tive uma certa afinidade (ou cumplicidade) com meu avô – sou o primeiro neto. Não sei explicar exatamente o porquê. Talvez pela infinidade de coisas interessantes que ele me mostrava, ou pela sua verve, ou pela sua indignação com o que achava incorreto. O fato é que eu, vez ou outra, estava ao seu lado, a tiracolo. Eu sempre fazendo aquelas perguntas complicadas de criança, e ele sempre me respondendo pacientemente.

Calhou de irmos visitar o Murilo Rubião, de quem meu avô Daniel era amigo – acho que trabalharam juntos na Imprensa Oficial. Eu nem sabia de quem se tratava, muito menos de sua importância. Tive um grande choque, com momentos de temor, quando entramos no apartamento e eu me deparei com aquele senhor de cara fechada, óculos de grossa armação e corpo rotundo. Um apartamento escuro e silencioso, com livros, móveis antigos e algumas plantas. Via-se que morava ali um senhor solitário, centrado, sério e exigente.

Sempre morei em casa, mas naquele momento tive vontade de morar em apartamento, mas que fosse igual ao do Rubião, uma “caixa em penumbra”, onde o isolamento fosse uma proteção do mundo externo. O apartamento do Murilo era misterioso. Passava-me uma sensação de “exigência de privacidade” – de que o escritor nunca abrira mão.

Um pouco de descontração, pelo menos para mim, foi quando o Murilo nos convidou para ir até a cozinha. Ele abriu um armário, acima da pia, e retirou uma enorme caixa preta, abarrotada de chocolates “Diamante Negro”. Abriu a caixa e disse para eu me servir. Diante da seriedade daquele “monstro” à minha frente, peguei um chocolate, timidamente. Na verdade eu queria a caixa inteira; não aquela – pois eu temia o Rubião -, queria uma caixa de chocolates igual àquela, preta, cheia de “Diamantes Negros”. Ele disse para eu tirar mais um, mas pela boa educação, recusei. Ele então, percebendo a minha timidez e o brilho nos meus olhos, tirou mais um “Diamante” e colocou-o na minha mão.

Não comi na hora nenhum dos dois; guardei-os no bolso. Voltamos à sala-escritório e a conversa entre ele e meu avô durou pelo menos umas duas horas. Fiquei sentado, ignorado em uma cadeira antiga, em silêncio, durante todo o período. Não havia um brinquedo para me distrair naquele apartamento lúgubre. Ficava olhando os móveis, a máquina de escrever, os papéis, alguns quadros.

Hoje eu não conseguiria identificar a rua ou bairro onde ficava o apartamento do Murilo Rubião. O escritor morreu em 1991. Não sei se ele e meu avô eram grandes amigos, mas percebi uma ponta de tristeza em meu avô Daniel, muito bem disfarçada – ele tinha a arte de absorver tristezas, só para proteger os seus. Meu avô morreu em 1995 - em minha memória, restaram os lugares e amigos que visitamos. Foi quando me dei conta da importância do Rubião e passei a ler seus contos com admiração. Fiquei sabendo que ele foi um escritor perfeccionista ao extremo – chegava a escrever apenas uma frase por dia, bem lapidada.

Não vi o Murilo sorrir naquele encontro com meu avô. Talvez ele tivesse o mau humor irônico e surreal do coelho Teleco. Mas toda vez que vejo um “Diamante Negro”, lembro do Murilo Rubião.

27 de out. de 2009

Que mãos o conduzem?

E do alto dos seus 80 anos, postou-se diante do espelho sem se importar com as rugas – inerentes a todo ser. Assustou-se com a sensação inescapável – quase surreal – de que não se enxergava mais por completo. Pela primeira vez na vida se via atado – não no seu próprio corpo, carnal, mas atado em sua imagem refletida. Viu, enfim, quantas mãos o agarravam furiosamente. Dezenas, centenas de mãos! Tantas mãos o impediam de ver até o que restara de seu próprio corpo – o que sobrou do que ele realmente queria ser. Mãos que o dispersaram, mostrando-lhe arbustos comuns sem que ele percebesse a frutificação e o conseqüente apodrecer das cerejas bem ao seu alcance. Mãos que o conduziram por caminhos pisados e repisados por todos. As mesmas mãos que por muitas vezes apontaram-lhe o indicador de forma acusadora, deixando-o só no quarto vazio da mediocridade. Mãos que lhe mostraram o que ele não queria ver. E no túnel escuro que se estende atrás de sua patética imagem no espelho, ele tenta recuperar objetos, sorrisos, arrepios e amores cedidos de forma gratuita. E treme ao perceber que a procura pelos cacos dos seus desejos é vã, tanto na infinidade daquele túnel míope quanto por entre as frestas de suas rugas.

2 de jun. de 2009

Não há verdade plena

Nunca conseguiremos atingir a verdade plena. E muito menos, por conseqüência, o conhecimento pleno. Todo o conhecimento racional acumulado desde os questionamentos pré-socráticos é falacioso. O máximo que conseguimos é chegar bem perto da verdade, mas nunca alcançá-la por completo.
No âmbito da comunicação, quando um interlocutor (A) profere uma frase/discurso (x) a outro interlocutor (B), está inserida ali (em x) uma intenção/experiência impossível de ser totalmente descrita em palavras. Quando A narra, com riqueza de detalhes, que degustou um vinho francês ou leu uma peça de Shakespeare, ou mesmo ouviu Chopin em uma tarde fria, não consegue, por mais que tente, transportar a sua experiência, seu paladar, seus arrepios, suas lágrimas a B, valendo-se de palavras – que é o meio de que dispomos para transmitir conhecimento ou verdades. O cavalo marrom de A, narrado a B, nunca será o mesmo para este. Na transferência de discursos, criamos quase-verdades.
Um leitor A, ao ler um livro, cria em sua mente uma história diferente da criada por B, que difere de C, de D, etc. Milhares de pessoas leram o mesmo livro e imaginaram milhares de histórias diferentes. Todas também distintas da história real, que é a do próprio autor.
Muitas são as intenções por trás das palavras – e isso pode ser a razão de muitos mal-entendidos, além das quase-verdades. Um simples elogio de A, se não for bem retratado, pode transmitir a B tanto um discurso neutro e insosso, como (até) soar como crítica. Neste caso, é como se existisse um paradoxo da boa intenção: quando se tenta dizer mais, entende-se menos.
A palavra é tão carente de significado pleno que, sempre que podemos, tentamos aliar algum outro tipo de percepção (observamos as feições do falante, seus gestos, etc.) como complemento no ato do proferimento do discurso. As trocas de mensagens na internet reforçam a tese. Quantas vezes tivemos de nos retratar, de explicar melhor uma mensagem enviada ou um comentário que foi mal interpretado do outro lado da tela? Quem lê texto (palavras) não vê feições nem gestos. Vai daí a proliferação das carinhas (emotions) para completar nosso discurso. O corpo fala (há até um livro) porque as palavras não bastam.
O que há realmente de verdadeiro é o que está em nossa mente; cada um com a sua. Toda tentativa de exteriorização dessas verdades tornam-nas quase-verdades. O maior mérito de quem se propõe a refletir sobre tudo – e isso é a razão da real existência, creio - é a insistência em perseguir a verdade plena (mesmo ciente desta impossibilidade) e enxergar luzes no simulacro que é o mundo.

19 de mai. de 2009

O outro lado do gume

“ ...isso tudo indica que não, não pode ser dúvida; é fuga. Você se acovarda ao não levar a questão adiante, a pensar sobre a possibilidade... Insiste em grafar com d minúsculo. E as suas oscilações? Ora considera... ora não... Acontecimentos são coincidências, acasos. Como se o fato de uma senhora que perdeu o avião, justamente no dia em que ele caiu, fosse obra do acaso. E contra-argumenta: ‘e os outros que morreram na queda, é obra de quem?’. Não considera o destino. Claro que existem mesmo questões sem resposta. Mas faz parte do mistério. Mistério é mistério, ora essa!; não há o que ficar filosofando... Lê a Bíblia de forma ‘literária’ com tantos livros realmente literários à disposição. Considera a dúvida, aquele papo de Descartes, Decart, Decartes... não sei nem pronunciar. E faz chiste: ‘se oro, creio’. Ora ora; ora não ora. Gostou do trocadilho? Só quando se sente em perigo... Ou quando está sem grana... E põe a própria oração em questão. Aí eu concordo: rezar de que forma se a primeira oração que vem à mente é uma Ave-Maria ou um Pai-Nosso? Herança de infância. Até rimou: herança...infância... Sua questão procede: como orar sem aderir a alguma corrente? Inventar uma oração alternativa, particular, isenta? Uma espécie de oração laica? Se bem que quando você andava lendo Santo Agostinho você ficou bem empolgado. Logo esmoreceu; aquele papo de que o maior talento do filósofo era a capacidade de narrar e argumentar - nada mais! Tornou-se até um dogma intelectual não admitir a transcendência, você notou? Vaidades... Aí entram também questões de direita e esquerda, marxismo, etc. - melhor nem entrar nesse ramo. Laico, laico, laico... Adora falar laico. Esse ceticismo inconstante acaba colocando minhocas na minha cabeça. Idolatra a arte, a arquitetura, a música, mas desdenha das procissões, dos pagadores de promessas, da 'lógica da punição': cento-e-vinte-orações, três-vezes-ao-dia, todos-os-dias-da-semana; domingo-o-dobro. Diz que basta uma oração, só uma!, para fazer o mesmo 'efeito'. Cada um faz o que quer da vida e acredita em quem quiser, com o perdão do clichê. E vou além: cada um dá o seu dinheiro a quem quiser. Mas 'lógica da punição', do sacrifício é mesmo perturbadora, tenho de admitir. Plantar agora para colher depois... outro clichê. [Silêncio] Muitos dos seus argumentos são lugares-comuns também. [Silêncio] E o seu silêncio? Acho que o seu silêncio é mais misterioso do que o próprio mistério, o ‘mistério final’, o outro lado - se é que ele existe. Agora até eu fiquei em... [Silêncio] E acho também que você se sente muito confortável com a dúvida. Você gosta da dúvida, de caminhar no gume. Mas é mais fuga do que..."

7 de mai. de 2009

O Kindle e o Conhecimento













Surgiu nesta semana um novo brinquedinho tecnológico – agora direcionado aos leitores. O Kindle DX, espécie de e-book lançado pela Amazon, com capacidade de memória ampliada (em relação ao seu antecessor) para cerca de 3.000 livros. Vem com uma novidade: uma tela maior, que permite uma melhor leitura de jornais.


Sem entrar muito no mérito do fim ou não do livro, o Kindle DX é realmente uma ferramenta que vai mexer com o mercado de livros no mundo. Quem não gostaria de carregar uma biblioteca respeitável em um aparelhinho? A favor do Kindle ainda há a questão ecológica - economia de papel. Difícil resistir à possibilidade de levar debaixo do braço o Em busca do Tempo Perdido (Proust), A Montanha Mágica (Thomas Mann), O Homem sem Qualidades (Musil), Ulisses (Joyce) ou A Comédia Humana (Balzac). Livros de peso – no sentido figurado e literal. A invenção é boa, apesar de ainda ser difícil imaginar a leitura de um Kant na tela.


Toda evolução tecnológica, fora os supérfluos mercadológicos, é bem-vinda. Mas há uma questão: até que ponto o surgimento do Kindle DX (e do e-book) vai influenciar o conhecimento (ou a cultura)? A facilidade em se baixar livros em segundos – ou de ler jornais na tela – incrementará o acesso ao conhecimento? Ou melhor: produziremos mais conhecimento? Evoluiremos (mais) culturalmente? Não há como analisar o avanço do aparato tecnológico sem analisar o comportamento dos leitores nessa onda virtual.

Pesquisas apontam a queda das tiragens dos principais jornais do mundo, a cada ano. Será que o leitor de jornal impresso está migrando para o jornal virtual? Matérias na imprensa revelam um vertiginoso crescimento dos blogs – e da leitura destes. Há, no entanto, um hiato nesta equação, se considerarmos que os jornais não disponibilizam o conteúdo integral da edição impressa em seus sites. Ou há uma fuga de leitores de jornais impressos para lugar nenhum ou estão migrando para blogs de colunistas ou de amigos; para diários online, etc.


A proliferação de blogs é interessante pela possibilidade de se trocar ideias e de se criar grupos de discussão. Mas corre-se o risco de esses grupos ficarem sempre olhando
para o próprio umbigo e ignorarem o mundo externo, ou seja, blogueiro lê blogueiro e não lê jornais. É apenas uma especulação, sem comprovação estatística. É inegável que a leitura de jornais, (boas) revistas e textos analíticos são imprescindíveis para a formação de um mínimo de senso crítico. Se o Kindle DX reaquecer a leitura de jornais diários, ótimo!


O mesmo vale para os livros que serão armazenados no aparelho. Se os leitores do livro-objeto migrarem para o
Kindle, será um avanço. Uma dúvida: a evolução tecnológica acompanha o interesse do leitor, em termos de conteúdo? Haverá demanda literária do leitor comum - fora da academia - para tanto livro armazenado? Teria o leitor do novo século interesse em ler Dom Quixote (no papel ou no Kindle), se ele está se habituando a ler a conta-gotas, um blog/site aqui outro ali? O melhor indício de que a informação está sendo consumida em pílulas, veloz e superficialmente, é o sucesso do Twitter.


É possível que a ansiedade e a velocidade com que se passa de um blog/site a outro possa causar impaciência no internauta para encarar textos analíticos que, grosso modo, resultem em inteligência? Essa tese foi levantada pelo economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, em recente entrevista no projeto
Sempre um Papo (pode ser conferida no site), quando lançou o seu Livro das Citações. Não há comprovação científica, mas se, principalmente os jovens em formação, estiverem picotando o conhecimento, estamos diante de uma catástrofe cultural futura. Textos analíticos requerem tempo e dedicação. Os jovens podem estar deixando passar o melhor momento de sua moldagem intelectual se se afastarem de textos analíticos imprescindíveis à inteligência.


O
Kindle DX é uma ótima ferramenta de disseminação cultural, mas pode estar evoluindo inversamente proporcional ao interesse de seu próprio conteúdo. Uma última provocação, agora contra o Kindle: perderemos aquelas leituras instigadas pelas charmosas lombadas dos livros nas nossas estantes? Haverá lugar para as lombadas no Kindle?

22 de abr. de 2009

Livros no Google


























Robert Darnton é professor da Universidade de Harvard e atualmente diretor da biblioteca da instituição, a quinta maior do mundo, com 15 milhões de volumes. É também autor de Edição e Sedição (Companhia das Letras), dentre outros livros. O professor levanta uma questão fundamental, de caráter urgente, em um ensaio na revista Serrote (vol.1, Instituto Moreira Salles): o futuro dos livros e a sua relação com o site de buscas Google.


O ensaio faz uma analogia entre o tempo em que vivemos (grande aparato tecnológico disponível) e o ideal iluminista. Para o autor, “o século 18 [Iluminismo] imaginava a República das Letras como um reino sem polícia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto a determinada pelo talento”. Segundo Darnton, com o processo de digitalização dos livros, teríamos uma concretização do Iluminismo que não chegou a ocorrer. “A democratização do conhecimento agora parece estar na ponta dos dedos. Podemos dar vida ao ideal do Iluminismo na realidade”, conclui.


Mas a grave questão levantada, segundo o autor, está justamente nesse processo de digitalização, envolvendo uma empresa americana conhecida como Book Rights Registry (representante dos detentores de copyright) e o Google. Está sendo amarrado um acordo suspeito e obscuro entre as duas empresas para a digitalização de várias obras – em sua maioria científicas, que estão fora de catálogo. O acordo poderá resultar na maior biblioteca do mundo (ainda que virtual), considerando-se os livros em domínio público (um milhão) que o Google tem atualmente em seu catálogo - mais os que continuará digitalizando. O site venderia, assim, aos interessados na consulta de seu acervo, uma licença de consumo, e se encarregaria (honestamente!?) de repassar os devidos direitos autorais às editoras e autores.


Dentro dessa obscuridade do acordo levantada por Darnton, ainda há uma cláusula que rege que “os leitores não poderão imprimir nenhum texto protegido por copyright sem pagar uma taxa aos detentores dos direitos(...)”. E há uma ainda pior, com nuances de monopólio: as editoras ou os autores que quiserem quebrar o acordo, não poderão digitalizar novamente suas obras em outro site; terão de buscar este direito na justiça. Detalhe: atualmente só o Google tem a riqueza para digitalizar em escala.


Darnton termina o ensaio levantando uma questão: “o que acontecerá se o Google [que é uma empresa] privilegiar a lucratividade ao livre acesso?”. E se o Google cobrar acima do preço justo? E eu completo com mais um ponto: e se o site resolver boicotar ou ideologizar o acervo?


Gostaria de extrapolar as ideias colocadas no ensaio. É inegável que temos, em se tratando de Ética/Política, um embate entre o setor privado (sempre voraz) e o público (sempre tentando conter essa voracidade em defesa do bem-estar coletivo). Só que no caso há uma supremacia do privado (interesses do gigante Google, das editoras e dos autores) em relação ao público (as bibliotecas públicas e algum setor jurídico regulador, certamente ainda imaturo para tratar desta recente questão). Está-se delineando um cenário de monopólio, por enquanto restrito aos Estados Unidos, mas que pode se alastrar pelo resto do mundo.


Monopólio tem de ser tratado com esmero por instituições jurídicas especiais não só americanas, mas, se possível, por organismos internacionais. Sabemos bem que a velocidade do desenvolvimento tecnológico é infinitamente superior à sua regulação por instituições jurídicas. Um (possível) monopólio do Google certamente atingirá outros países em curtíssimo espaço de tempo. Se os demais governos ignorarem a discussão e não se manifestarem, poderá ser tarde demais. Tem de haver urgentemente uma intervenção internacional nessa discussão.


Mas há um problema anterior a toda essa polêmica. Mais do que digitalizar livros é importante colocarmos na pauta do debate a insuficiente democratização virtual e, por conseqüência, a restrição da disseminação cultural. Toda discussão acerca da informatização tecnológica – que demanda custos razoáveis com equipamentos modernos e ágeis, provedores de acesso, etc. – inevitavelmente nos remete à elitização da informação. Nem nos países ricos há acesso à informação virtual planificada, para todos – quiçá no Brasil.


Qual seria a relação entre um pesquisador de universidade federal brasileira e a Big Biblioteca Google? Pesquisadores bolivianos, por exemplo, teriam condições materiais de acessar o acervo do site? Seria importante incluir, em qualquer negociação com megaempresas virtuais, contrapartidas sociais, buscando reduzir a desigualdade econômico-virtual de países periféricos, de universidades deficitárias, bibliotecas defasadas ou de pesquisadores carentes. Todo acordo de digitalização de acervos poderia, por exemplo, gerar a impressão e doação de livros para bibliotecas carentes, em centros estratégicos.


Faz-se necessário, portanto, uma mobilização internacional para acompanhar os movimentos comerciais do Google, pois já há setores tecnicamente monopolizados pelo site, que foram crescendo sem nossa percepção. Haja vista o rol de serviços prestados pelo site (Google Earth, Google Maps, Google Images, etc.) que usamos frequentemente, sem nos darmos conta de que a megaempresa está por trás da publicidade atrelada a eles.

19 de abr. de 2009

Jackie Paris



Jackie Paris foi um cantor de jazz americano – morou em Nova York -, cujo estilo se aproximava de um misto entre Nina Simone e Chet Backer. Foi eleito o melhor cantor de 1953 pela revista “Down Beat” e tinha a preferência de ninguém menos do que Ella Fitazgerald, Nat King Cole, Sarah Vaughan, Charlie Parker, Lionel Hampton, Charles Mingus, Thelonious Monk. Lançou poucos discos, que hoje são raridades nos sebos e valem uma fortuna em CD. Como ocorre com vários artistas, Jackie Paris era uma pessoa de difícil relacionamento, devido ao seu ego nada modesto. Jackie teve seu auge nos anos 50, quando lançou quatro álbuns antológicos.


No hemisfério sul, no Rio de Janeiro, Cartola distribuía suas belas músicas e tentava se virar para sobreviver. Depois de ser até dono de bar, caiu em decadência e foi encontrado, por acaso, lavando carros em uma das ruas da cidade. Um iluminado executivo de gravadora, vendo-o naquela situação, fez um contrato com Cartola para produzir quatro álbuns e registrar sua obra. Sorte!


A mídia costuma ser ingrata com alguns artistas, empobrecendo o patrimônio cultural. Culpa também das gravadoras, mais preocupadas com o marketing de massas do que com a música de qualidade. Assim como Cartola, que teve de se arrumar para conseguir grana, Jackie Paris chegou a ser ascensorista em um prédio nos anos 60, em Nova York. Por pouco a humanidade deixa cair no esquecimento dois gênios da música.


De mito a ascensorista, Jackie Paris foi inexplicavelmente recusado pelas gravadoras, que certamente preferiram afagar algum popstar de sucesso momentâneo. O cantor teve de gravar um CD através de um selo japonês. Jackie foi redescoberto por Raymond De Felitta, um músico de jazz e diretor de cinema, que se interessou em pesquisar a vida deste mito do jazz, quando ouviu sua voz rouca em um programa de rádio. O curioso é que o cantor foi considerado morto no ano de 1977, em um verbete de algum dicionário de música. O diretor ficou perplexo quando viu uma chamada para um espetáculo (concorridíssimo!!) de Jackie Paris no Standard Jazz (NY), em 2004.


Raymond De Felitta procurou Jackie Paris para realizar um emocionante documentário, à Buena Vista Social Club, no qual o cantor disseca sua difícil carreira, seus três casamentos e um filho perdido no mundo. O nome do documentário é Tis Autumn: The Search for Jackie Paris (EUA, 2006). Há no filme algumas imagens de Jackie Paris cantando no Standard em 2003, já doente, com sua voz cambaleante, mas com uma delicadeza impressionante.
Jackie morreu em 2004. Assisti à essa pérola no Telecine Cult e tive a sorte de conseguir gravar uma cópia. Não sei se existe o material em DVD. Recomendo tudo sobre Jackie Paris!