13 de nov. de 2009

Murilo Rubião e o chocolate




- Me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
- Moço, oh! Moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
- Está bem moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento...”


Este pequeno trecho, que vale por uns cem livros de Dan Brown, é o começo do conto “Teleco, o coelhinho”, do escritor Murilo Rubião - um dos precursores do realismo fantástico no Brasil.

Por sugestão do amigo Jason, vou relatar um encontro que tive com Rubião, em meados dos anos 70, quando eu era ainda criança. O meu avô Daniel, apesar de não ser uma celebridade, era uma pessoa de certa forma bem relacionada em vários setores da sociedade belo-horizontina. Funcionário público “faz tudo” (estamos nos anos 60 e 70), tinha livre trânsito entre políticos, médicos, advogados, escritores, atores, e na imprensa em geral. Descendente de portugueses (tinha até sotaque d’além-mar), era amante da política. Autodidata, trocava idéias e aconselhava um caminhão de gente que vinha a nossa casa.

Sempre tive uma certa afinidade (ou cumplicidade) com meu avô – sou o primeiro neto. Não sei explicar exatamente o porquê. Talvez pela infinidade de coisas interessantes que ele me mostrava, ou pela sua verve, ou pela sua indignação com o que achava incorreto. O fato é que eu, vez ou outra, estava ao seu lado, a tiracolo. Eu sempre fazendo aquelas perguntas complicadas de criança, e ele sempre me respondendo pacientemente.

Calhou de irmos visitar o Murilo Rubião, de quem meu avô Daniel era amigo – acho que trabalharam juntos na Imprensa Oficial. Eu nem sabia de quem se tratava, muito menos de sua importância. Tive um grande choque, com momentos de temor, quando entramos no apartamento e eu me deparei com aquele senhor de cara fechada, óculos de grossa armação e corpo rotundo. Um apartamento escuro e silencioso, com livros, móveis antigos e algumas plantas. Via-se que morava ali um senhor solitário, centrado, sério e exigente.

Sempre morei em casa, mas naquele momento tive vontade de morar em apartamento, mas que fosse igual ao do Rubião, uma “caixa em penumbra”, onde o isolamento fosse uma proteção do mundo externo. O apartamento do Murilo era misterioso. Passava-me uma sensação de “exigência de privacidade” – de que o escritor nunca abrira mão.

Um pouco de descontração, pelo menos para mim, foi quando o Murilo nos convidou para ir até a cozinha. Ele abriu um armário, acima da pia, e retirou uma enorme caixa preta, abarrotada de chocolates “Diamante Negro”. Abriu a caixa e disse para eu me servir. Diante da seriedade daquele “monstro” à minha frente, peguei um chocolate, timidamente. Na verdade eu queria a caixa inteira; não aquela – pois eu temia o Rubião -, queria uma caixa de chocolates igual àquela, preta, cheia de “Diamantes Negros”. Ele disse para eu tirar mais um, mas pela boa educação, recusei. Ele então, percebendo a minha timidez e o brilho nos meus olhos, tirou mais um “Diamante” e colocou-o na minha mão.

Não comi na hora nenhum dos dois; guardei-os no bolso. Voltamos à sala-escritório e a conversa entre ele e meu avô durou pelo menos umas duas horas. Fiquei sentado, ignorado em uma cadeira antiga, em silêncio, durante todo o período. Não havia um brinquedo para me distrair naquele apartamento lúgubre. Ficava olhando os móveis, a máquina de escrever, os papéis, alguns quadros.

Hoje eu não conseguiria identificar a rua ou bairro onde ficava o apartamento do Murilo Rubião. O escritor morreu em 1991. Não sei se ele e meu avô eram grandes amigos, mas percebi uma ponta de tristeza em meu avô Daniel, muito bem disfarçada – ele tinha a arte de absorver tristezas, só para proteger os seus. Meu avô morreu em 1995 - em minha memória, restaram os lugares e amigos que visitamos. Foi quando me dei conta da importância do Rubião e passei a ler seus contos com admiração. Fiquei sabendo que ele foi um escritor perfeccionista ao extremo – chegava a escrever apenas uma frase por dia, bem lapidada.

Não vi o Murilo sorrir naquele encontro com meu avô. Talvez ele tivesse o mau humor irônico e surreal do coelho Teleco. Mas toda vez que vejo um “Diamante Negro”, lembro do Murilo Rubião.

14 comentários:

  1. Wellington,

    Belo Horizonte tem uma pradição literária ímpar. Como não sou daqui, aos poucos vou aprendendo.
    Nunca li nada do Murilo Rubião, que fiquei conhecendo há pouco, no programa "Imagem da Palavra", do canal 9.
    Espero, em breve, corrigir essa falhar "curricular".

    Abraços.

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  2. Valeu Guilherme!

    Você não vai se arrepender em ler o Rubião. São 33 contos.

    abraço, w.

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  3. caro w.,

    li seu relato de visita ao rubião enternecido; o conheci quando criança também, mas, ao invés de chocolate, ele me ensinou a escrever com uma palavra: hipopótamo =P

    lembro dele falando: olha como é uma palvra bem cortadinha

    hoje, escrevo sobre a obra dele

    só um detalhe: publicados são 33 contos, mas, em breve, pretendo, com outros pesquisadores, publicar os outros contos que ele não publicou; são cerca de 22 no total

    abraço imaginário de um ornitorrinco

    c. =)

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    1. Olá! pretendo pesquisar Murilo. Gostaria de trocar figurinhas.

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  4. Caro c,

    Obrigado pelo comentário!
    Legal também essa história do hipopótamo, o seu encontro com o Murilo. Vale também um post, não?

    abraço, wellington

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  5. Prezado w.,

    caso eu tivesse um blog ou espaço a fim, escreveria um post — mas

    já tentei manter blogs, mas certa dose de anacronismo e de atividades cotidianas não permitiram que alimentassem as criaturas, daí que elas sempre definhavam

    quem sabe em breve tal se torne possível? caso sim, contarei minha experiência de alfabetização com um hipopótamo, mediada pelo rubião ;-)

    até lá, continuarei a visitar seus lugares imaginários =)

    abraço,

    c.

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  6. Cleber,

    como fica a questão dos direitos autorais pra publicar os outros 20 e poucos contos do Murilo?

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  7. Bom, Jason, visite

    www.murilorubiao.com.br

    os direitos são reservados aos "herdeiros naturais" do espólio, visto que o Rubião não teve filhos — mas, por se tratar de uma publicação feita a partir do material doado ao Acervo de Escritores Mineiros (www.ufmg.br/aem), não há muitos empecilhos para se viabilizar a edição, até porque uma das atribuições do AEM é viabilizar a edição de inéditos que se encontram nos espólios dos escritores lá alocados

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  8. Legal, mas aí entra outra questão: e a vontade do autor de não publicar os contos? Morre com ele?

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  9. Bom, se a vontade do autor de não publicar fosse levada a risca, não teríamos conhecido vários textos — Kafka, entre tantos outros.

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  10. Concordo contigo, só queria saber mesmo se não há nada nos documentosdo Murilo lá no Acervo onde ele deixa expressa sua vontade...

    Aqui na América do norte, o pessoal vem discutindo muito ferrenhamente sobre o que a esposa do David Foster Wallace está fazendo.

    Depois que ele suicidou há um ano e poucos meses, ela publicou um discurso de formatura dele como um ensaio, e está publicando em várias revistas trechos de um romance inacabado como contos. E o próprio romance inacabado vai sair ano que vem, incompleto mesmo.

    A questão é que ele deixou expressa sua vontade de não publicar o que não havia terminado, mas ainda assim, como nova dona dos direitos autorais dele, ela tá lançando tudo...

    Isso dá um post, hein Well?

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  11. Entendo o que quer dizer — da arbitrariedade do abuso do direito de propriedade sobre espólios literários ;-)

    O grande problema: a tirania do direito natural do herdeiro (seja cônjuge, filhos, familiares) e o direito público de acesso à informação. Em miúdos: o confronto entre interesses públicos e privados — penso mais que, em se tratando de uma disputa travada em torno de patrimônio cultural, no caso a literatura, quem se beneficia mais, a pessoa que fica como "benfeitora da humanidade", que disponibiliza os textos guardados e desconhecidos, ou aqueles que, a partir de tal ação podem ter acesso a uma parcela desconhecida da obra?

    Questões a parte, penso no recente caso de Max Brod. Sabemos como Kafka confiou seus documentos, rascunhos e originais a Brod, com a condição de que os destruisse. Sabemos que isso não ocorreu e, então, pudemos ler muitos textos de Kafka. Após a morte de Bord, ele confiou a sua secretária um montante considerável de cartas e textos de Kafka, até então não publicados. Esta gentil senhora judia não permitiu a pesquisadores do mundo inteiro que consultassem esse material. Esta senhora morreu a poucos meses. O dilema: como ela não tinha família, o Estado de Israel está decidindo como proceder em relação ao espólio de Kafka que ela manteve sob custódia. O que é interessante. Brod não deixou expresso que os documentos não pudessem ser consultados: pelo contrário. Se ele disponibilizou para edição, por que guardar o resto?

    Enfim. No espólio de Rubião não consta nenhum documento que expresse a vontade do autor de não ter seus contos, uma novela e/ou correspondências publicados.

    Concordo que a questão pode ser expressa em: o que fazemos com os escritores quando temos acesso a seus documentos pessoais? Tendemos a criamos imagens do escritor que não condizem com sua expressão literária, incorrendo em crime de lesa-literatura e em deslizes ético-jurídicos como o apresentado por você, a respeito das imposturas da sra. DFW.

    Concordo que seria uma boa questão para um post: o que fazemos com o escritor quando o expropriamos de sua vontade e de seus direitos?

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  12. Pois é, Cleber... a mulher que editou o DFW por 15 anos tá fazendo "ajustes" no romance que ela acha que ele faria. Ela declarou isso há alguns dias numa entrevista. Isso é um bizarrice, não?

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  13. Caros colegas Jason e C.,

    agradeço o interessante debate feito aqui sobre o Murilo e sua obra. Quanto ao post sugerido, vou pensar a respeito. Não sei se terei argumentos/competência para escrever sobre.

    Obrigado a vocês!

    Abraços, well

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