2 de dez. de 2009

Anticristo: sexo como culpa















Sexo e culpa. Ou culpa pelo sexo? O filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, tem esses dois ingredientes como linha mestra. Classificá-lo como “chocante”, “exagerado”, “apelativo”, como vêm fazendo os críticos, é analisar o filme de forma reducionista, ignorando a riqueza de suas intricadas relações, enigmas e símbolos.

Enquanto faz amor de forma intensa, um casal ignora os perigos da autonomia do filho, que consegue descer do berço, abrir a janela e se jogar do alto de um prédio – em uma cena antológica, diga-se de passagem. Com a morte da criança, a mãe entra em estado de luto profundo, tendendo à irreversibilidade e beirando o suicídio. O marido, terapeuta, propõe um tratamento – na verdade um jogo – para tirá-la do abismo. A proposta do esposo é trabalhar com algo que a remetesse ao “medo”, algo que amedrontasse a esposa (uma lembrança, objeto, lugar, etc.). Ela, então, sugere se isolar com o marido em uma casa no meio de uma floresta, onde estivera recentemente com o filho. De forma crescente, o terror começa a tomar conta do casal.

Vários acontecimentos envolvendo elementos simbólicos atormentam a vida dos dois. Contrapondo ao jogo proposto pelo marido, a esposa resgata, no sótão da casa, um material de estudo sobre o que se teria denominado “feminicídio” – inclusive com cadernos, livros e recortes de jornais, contendo agressões e mutilações a mulheres. Somados a isso, há vários símbolos enigmáticos: um animal aparece frequentemente com um filhote recém-nascido, ainda preso ao útero, se arrastando pelo chão (a mãe que não abandona o filho?); um corvo é apedrejado furiosamente pelo marido, mas nunca morre; raízes se entrelaçam aos corpos do casal, enquanto fazem sexo ao pé de uma árvore gigantesca.

O grande mérito de Lars Von Trier é trabalhar com esses ingredientes de forma quase onírica. Os símbolos estão sempre voltando, são recorrentes, como se fossem um aviso – a constância dos símbolos nos faz lembrar os filmes de David Lynch. Por vários momentos o espectador tem a sensação de que aquela imersão sufocante na floresta vai terminar em um corte de cena, no qual o casal pula ofegante da cama, voltando à “segurança urbana”, saindo do “flashback”. Mas a floresta é real, e é chamada de “satanás” (anticristo?). O tratamento proposto pelo marido não surte efeito. A esposa, então, alia-se à floresta, incorporando-a de forma selvagem para se vingar do marido (e seu ineficiente método “anti-luto”). Animais, ventos, plantas e árvores se unem a ela para eliminar “o mal”.

O terror de Lars Von Trier tem nuances poéticas devido à maneira como é tratado; pela sua opção estética. O diretor certamente abandonou o “Dogma 95” - movimento que o projetou nos anos 90, quando realizou filmes de baixo orçamento, mas com extrema inventividade. Sua experiência com efeitos especiais em “Anticristo” é deslumbrante. As cenas inicial e final são afins, carregam um tom azulado de rara beleza, ao som de “Lascia Ch’io Pianga”, ópera de Haendel. As imagens da floresta são onduladas e estonteantes, dando o tom do terror para quem se arrisca a entrar na mata fechada. A ausência de luz (à Tarkowski - a quem o filme é dedicado), mesmo durante o dia, conduz o espectador a uma noite interminável. E há também uma pitada “trash”, nas cenas de mutilações e agressões físicas.

A incursão de Lars Von Trier pelo suspense o reconduz aos trilhos da originalidade dos seus primeiros filmes, e o redime do fraco “O Grande Chefe”(2006). Em “Os Idiotas”(1998), o diretor trata de forma pitoresca e absurda da banalização social. Em “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005), a crueldade humana ganha uma roupagem teatral, cuja força está nos diálogos. Em termos de proximidade, se fizermos algumas concessões, “Anticristo” se aproxima mais do “Dançando no Escuro”(2000), pela dureza impiedosa das situações vividas pelas mulheres nos dois filmes. Se neste, o mote é uma sociedade aniquiladora, que rouba e explora uma inocente, transformando-a em culpada, em “Anticristo” o foco gira em torno da sexualidade, da perda irrecuperável, da vingança.

O filme “Anticristo” é inquietante não por aquilo que choca, mas pelos seus momentos herméticos e perturbadores. Os enigmas não são entregues gratuitamente. Os símbolos recorrentes nos jogam num labirinto de difícil solução. Ninguém sai incólume do cinema. A incursão do espectador naquela floresta é ludibriante e leva-o a pensar por dias nas possibilidades aventadas – ou deixadas em aberto. Muitas insinuações ficarão sem um desfecho (tão solicitado por alguns críticos).

O cinema (como arte) fascina pelas suas desmedidas, pela criatividade, pela busca de soluções estéticas incomuns em meio a tudo o que já foi produzido. Achar uma “brecha original” é tarefa para diretores ousados como Lars Von Trier. De que vale um final “resolvido” depois de uma caminhada como a de “Anticristo”?

9 comentários:

  1. Belíssima resenha, Well!

    Agora fiquei com ainda mais vontade de assistir ao filme.

    Espero que saia em DVD logo - perdi as esperanças de vê-lo no cinema!

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  2. Jasão,

    Agradeço a passagem por aqui. Pena você não conseguir ver o "Anticristo" no cinema. O filme perde muito, mas muito mesmo, se não for visto numa telona, no escuro, concentração, etlc. Salve o cinema!!!

    Valeu!! Abraço,well

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  3. Well, vi o filme e estou maravilhado.

    É um poema sensacional que só um poeta do porte de Von Trier pode escrever.

    Ele mergulha fundo na "psiquê cristã" que se imbricou na moralidade Ocidental.

    A dedicatória para Tarkóvski remete também a Bergman, outro que procurou expiar os seus traumas de infância em forma de fábulas medievais.

    A diferença entre Tarkóvski-Bergman e Von Trier, é que o dinamarquês escreveu uma fábula medieval com roupagem contemporânea.

    Genial o filme!

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  4. Jasão,

    Que bom que você gostou do filme. Não tinha reparado a "psiquê cristã". Boa! Vou refletir sobre isso, pelo que consigo lembrar do filme.

    Quanto ao Bergman, valeu a menção. Ainda não conheço o suficiente do diretor - sua obra é extensa! - para fazer essa ligação. Tenho que estudar mais o Bergman. Para o futuro.

    Valeu, abraço,
    well

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  5. Wellington, mesmo sem ainda ter assistido ao filme, concordo em tudo com você. A crítica parece ter ficado cheia de dedos, de repente, e resolveu bater no Von Trier. Pura bobagem e falta de sensibilidade. Assim que chegar na locadora aqui - se é que vai chegar - assistirei. Abraço!

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  6. Lindo comentário!
    Obrigado por ter comentado no blog Sessões, atravez do blog do Janot.
    Comentamos tbm o Anticristo do Trier e é pedante não? Ainda me intriga o simbologismo usado. Vai do gênio à besta. Incrivel.
    Parabéns e nos 'vemos' por aí!

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  7. Meu caro,voçê está meio doido....O cineasta não fez ainda esse filme que voçê analisou !Que tal assistir um pouco de Bergman e Herzog ?Talvez a Lucidez tome conta de sua vã filosofia . Ass.Mario T.

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  8. Como não fez o filme se todo mundo que comentou aqui já o assistiu?

    É cada uma...

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  9. Não tiro a riqueza do filme dada pela analise psicologica ergida pelos personagens, assim como também as cenas fortes que expressam de maneira mais que real a dor, sofrimento e a forma sexual por onde as angustias são dissolvidas. Numa visão "intelectual", visão prepondonderante atualmente, o filme não ofende , afinal é belo, a beleza em nosso cotidiano se ambientalizou as dores e desturbios que os nossos olhos se adaptaram a ver... enfim , não tiro os méritos do autor, porém sendo eu ainda um bom admirador da beleza dita "bela" preferia que a arte fosse usada de forma mais "saudavelmente inteligente " , gostaria de ver obras de von trier que me impressionasse com algo incomum, afianl sexo , dor , sofrimento e pessoas desequilibradas estou un tanto fartode ver .
    obrigado .

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