Esquinas Lúdicas
5 de mai. de 2011
Ohran Pamuk no Digestivo Cultural
Um texto sobre o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de Literatura em 2006, publicado no Digestivo Cultural.
9 de fev. de 2011
11 de jan. de 2011
O vermelho e o negro
A vida moderna é um mosaico. Temos dificuldade em organizar as informações com certa coerência. Pulamos de galho em galho em busca de mais e mais conteúdo. Trabalhar de forma organizada a quantidade de referências atualmente torna-se tarefa essencial. Stendhal construiu com maestria, em “O vermelho e o negro”, um cenário monumental, lidando com várias informações, de forma a nos causar inveja. Julien Sorel, seu personagem principal envolve-se com duas mulheres, em momentos distintos. Entre os dois amores, interna-se em um seminário. O livro pode ser dividido nessas três fases.
Mas o que conta não é a simples narrativa desse aventureiro que, como na história de Romeu e Julieta, escalava as janelas para beijar a mulher amada. O que torna o romance um clássico é justamente a habilidade de Stendhal em construir os cenários histórico, social e psicológico. Após ler o livro, tem-se a cristalina noção das relações de poder na nobreza, os desvarios políticos e as artimanhas para conseguir manter a “estirpe familiar”. Bem como as dificuldades e as barreiras impostas a quem, “de baixo” (como Julien), tenta se adentrar na burguesia, “promover-se” na vida. Havia um muro intransponível entre a plebe e a aristocracia. Para que recorrer aos livros de história para entender a sociedade francesa?
Stendhal, lá no século 17, trabalhava de forma invejável um mosaico que contemplava a construção de personagens como Julien, Sra de Rénal e Mathilde (suas duas amantes), um par de padrecos e bispos, os jogos de interesse e os costumes de uma burguesia abastada que não fazia nada além de comer do melhor, assistir a óperas e manipular tudo para manter sua riqueza.
Se o leitor atual está acostumado a ler romances rasos, pequenos e pueris, “O vermelho e o negro” é um desafio e ao mesmo tempo um norteador. Uma Bíblia da literatura ocidental.
4 de jan. de 2011
Cinema no Digestivo Cultural
7 de dez. de 2010
Você vai conhecer o homem dos seus sonhos
Em “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos”, Woody Allen exagera no número de adultérios. O que era apenas um mote em vários de seus filmes anteriores, torna-se um artifício caricatural neste último. Pai, mãe, filha e genro envolvem-se com outras pessoas, cada um à sua maneira, com relacionamentos bem peculiares e um tanto exóticos. O pai se apaixona por uma prostituta que vai corroer sua riqueza. O genro, um escritor fracassado, envolve-se com a vizinha violonista. A filha tenta um flerte com o dono de uma galeria de arte. E a mãe, influenciada por uma cartomante picareta, acaba conseguindo um bom parceiro. Conciliar essa quantidade de histórias pessoais faz do filme um mosaico um tanto difícil de ser trabalhado, o que prejudica o desenrolar da trama. Tudo isso faz do filme um tanto ágil e obrigatoriamente superficial. Mas Woody não se aperta. De novo os diálogos são o ponto forte do diretor e o melhor do filme fica pro final, na definição dos casais, quando ocorrem situações inéditas na filmografia do diretor: desilusão, apostas frustradas, arrependimento. “Você vai conhecer...” é bem inferior ao último filme do diretor (Tudo pode dar certo), mas diverte com inteligência.
1 de dez. de 2010
Saramago Pop Star
José Saramago quase morreu antes de morrer. Quando muitos tinham o sumiço do escritor como uma pneumonia controlável, na verdade ele estava agonizando. Mal se ouvia sua voz. Esse difícil momento, ocorrido três anos antes de sua partida definitiva, está retratado no documentário “José e Pilar”, em cartaz nos cinemas. O filme não é um documentário convencional, linear, que aborda a infância, os momentos difíceis pelos quais passou o escritor, a sua vida regrada. O maior mérito do filme é fazer jus ao nome, ou seja, abordar de forma equilibrada a relação do escritor com sua mulher, a jornalista espanhola Pilar.
Saramago teria morrido antes de morrer se não fosse sua esposa. Pilar passou a organizar com “mão de ferro” a vida “administrativa” do escritor, principalmente após a premiação do Nobel. Ela lia, separava e respondia (junto com o escritor) as cerca de 200 cartas que recebiam em casa, na ilha de Lanzarote. Ela também passou a organizar a agenda estafante do escritor, principalmente depois de sua “quase-morte”, antes de morrer.
Para muitos Saramago era uma figura difícil, mau humorada e arrogante (é difícil responder às mesmas perguntas em todo lugar que se vai, convenhamos). Mas o documentário mostra exatamente o contrário: um homem solícito, que relutava em recusar um convite para visitar algum país. Em algumas palestras Saramago chegava a autografar, com surpreendente paciência, mais de mil exemplares. Não foi nada intencional, mas Saramago se tornou “pop star”. Devido a isso, por pouco não morreu antes de morrer.
29 de set. de 2010
O brilho de Rocinante
Há inúmeras passagens primorosas em Dom Quixote. Em uma delas, o nosso herói e seu fiel escudeiro Sancho saem de cena para o brilho do quase inexpressível asno Rocinante. Em determinado trecho da genial e bem-humorada narrativa de Cervantes, os personagens, exaustos das intermináveis caminhadas, param para uma sesta em uma relva fresca - onde e quando brilharia a figura do cavalo Rocinante:
“Não cuidara Sancho de pôr peias a Rocinante, porque o tinha na conta de tão manso e tão pouco voluptuoso, que nem todas as éguas de Córdova o tinham feito adquirir mau vício. Quis, pois, a sorte e o diabo (que nem sempre dorme), que andasse por aquele vale pascendo uma manda de éguas galegas(...) Sucedeu, pois, que a Rocinante veio o desejo de deleitar-se com as senhoras éguas, e, saindo, assim que as farejou, de seu natural passo e costume, sem pedir licença a seu dono, deu um trotezinho algo brioso e foi participá-las de sua necessidade.”
2 de set. de 2010
A ilusão da alma
Um texto sobre o livro A ilusão da alma, de Eduardo Giannetti da Fonseca, publicado no Digestivo Cultural.
30 de ago. de 2010
À prova de morte, de Tarantino
Nenhum cineasta digeriu o pop para o cinema tão bem quanto Quentin Tarantino. Queiramos ou não, somos, ao sair de casa e colocar o pé na rua, abarcados por referências “genéticas” de Duchamp e Andy Wahol. Basta olhar as placas publicitárias, os rumos da arte contemporânea, a moda. Em À prova de morte, Tarantino faz uma conexão dos anos 70 com os dias atuais. A experiência e as referências que o diretor acumulou quando era funcionário de uma locadora nos Estados Unidos estão retratadas no filme. Ao assisti-lo, o espectador tem a sensação de estar vendo um filme de Sessão da Tarde, filmado rusticamente em VHS, com cortes abruptos. A trama se passa nas estradas americanas, nos tradicionais bares cujas músicas são executadas por vitrolas com fichas (jukebox).
Basicamente, o filme é dividido em duas partes. São duas turmas de mulheres, dispostas a curtir a vida nas estradas americanas, dançando, namorando, consumindo drogas. O elo entre as duas turmas (e as duas “partes” do filme) é um excêntrico dublê (Kurt Russell, em excelente atuação) de filmes B americanos. Ele adora velocidade e amedronta as meninas com seu carro turbinado. Seu maior prazer é perseguir as meninas de carro e provocar violentas batidas, com o intuito de matá-las.
Em alguns momentos o filme é puro suspense. Mas o melhor são as perseguições em alta velocidade – explicitamente influenciadas por filmes do gênero dos anos 70, como o Corrida contra o destino e a série Dirty Harry, de Clint Eastwood. Além disso, o filme tem cenas trash muito bem- humoradas.
À prova de morte (2007) é anterior ao Bastardos Inglórios (2009); só agora chegou ao Brasil. Tarantino fez um filme despretensioso, procurando focar mais nas referências cinematográficas da sua adolescência. O longa vai na linha do Pulp fiction, do Assassinos por natureza , Cães de aluguel e Kill Bill. A grande vantagem de Tarantino é conseguir entreter fazendo um cinema criativo, com referências a vários estilos e épocas do cinema. O diretor vem, ao longo dos anos, imprimindo um estilo próprio na história do cinema. Com o perdão do trocadilho, À prova de morte é o mais Tarantino dos filmes de Tarantino.
25 de ago. de 2010
Eleições Lúdicas
Em tempos de eleição, estas esquinas apostam no prazer estético contra a empulhação e contra o tédio político. Aliás, como se nota por estas páginas, onde há arte não há tédio. Acredito piamente no aperfeiçoamento humano pela estética, que tem forte poder de influência positiva na ética (particular), que, por consequência, afeta também positivamente a política (coletivo). Há de se diminuir a importância política – já amordaçada pela economia globalizada, pelas grandes corporações – e criar um ambiente propício ao prazer estético. Nada como trocar os enfadonhos debates políticos por um bom Bergman, Kubrick, Win Wenders, Woody Allen. Nada como trocar o falatório político nas rádios por Mozart, Bach, Miles Davis, Coltrane. Trocar a perda de tempo com o noticiário político nos jornais impressos por qualquer estrofe de Drummond. Meu voto para presidente nas próximas eleições será em Machado de Assis, por julgar o mais capacitado para entender o homem urbano e ironizar a mediocridade. Para governador, recomendo Guimarães Rosa – tenho esse privilégio por ser mineiro -, um profundo conhecedor da alma humana e do sertão brasileiro, onde pisam os pés descalços dos excluídos. Acredito piamente também que os dois serão partidários do voto facultativo. Somente assim, abrirei uma fresta mínima no meu prazer estético para dar uma espiadela nessa tal de política.
12 de ago. de 2010
Twitter-contos
Com essa onde de twittar, surgiu um concurso de contos com um limite de 140 caracteres. Eis uma brincadeira com a ideia:
[1]
No carro ouço toda a Nona de Beethoven, mais 10 sonatas de Bach, mais as 4 Estações de Vivaldi. Finalmente, chego no trabalho.
[2]
5 TVs em casa na novela das 8: sala, copa e 3 quartos. Todos desligam e vão pra janela. No prédio em frente, uma TV ligada: novela das 8.
[3]
Ouço jazz em disco de vinil. A música pula na vitrola. Não vejo arranhão no disco, mas um cadáver de uma formiga, atropelada pela agulha.
3 de ago. de 2010
Tudo pode dar certo - ou não.
Já imaginaram um homem, do alto dos seus 70 anos, financeiramente estável, levantar às quatro horas da madrugada para romper com a esposa? E se esse mesmo homem, quebrando todas as convenções sociais, sacudir a vida e alugar um pequeno apartamento no subúrbio de Nova York para viver sozinho com suas manias, ouvindo música clássica? Este homem se chama Bóris e é um professor de física aposentado, mas reconhecido mundialmente. Já tentou de tudo para fugir da monotonia, até suicídio (ele manca devido a isto). Vive andando pelas ruas e conversando com amigos nos cafés da cidade. Neurótico e procurando trazer novos desafios à sua nova vida, dá aulas de xadrez para crianças nas praças. Seu método de ensino: bofetadas na cabeça. Não perdoa nenhum lance errado dos garotos. Chama-os de imbecis sem um mínimo de pudor. Esse impaciente Bóris é a estrela de Tudo pode dar certo (Whatever Works, EUA,2009), filme de Woody Allen.
O velho Bóris, ao voltar para o apartamento numa madrugada, encontra uma garota de 21 anos mendigando em sua porta. Ela mudará sua vida, pois se tornará sua esposa e entrará no “mundo Boris”, repleto de referências culturais. Num belo dia, a mãe da garota, após se separar do marido, chega ao apartamento do casal. Dias depois, chega também o pai da garota, tentando uma reconciliação com a mãe. Mas isso é só o começo. Uma reviravolta na vida de cada um estará por vir. E o velho Bóris, que planejava ficar sozinho, está às voltas com esposa, sogra e sogro no encalço. (Isso é Woody Allen)
A mãe da garota conhece um filósofo, que mostra as fotos caseiras dela a um dono de uma galeria de arte. Eles veem um valor estético nas fotos e a incentivam a investir no mercado de artes. Ela acaba se tornando uma artista plástica de sucesso. O três passam a morar juntos e a dormir na mesma cama, vivendo uma relação não-convencional. Já o pai da garota, ao ser descartado pela agora contemporânea e famosa esposa, conhece um homossexual em um pub. Os dois acabam indo morar juntos. (Isso é Woody Allen).
A vida de Bóris e sua esposa adolescente também dá uma guinada. Seguindo a “ordem natural das coisas”, ela conhece um playboy, apaixona-se e casa com ele. Bóris vê isso tudo passar e, experiente em vida que é, encara tudo como uma comédia humana. Ele volta a ficar sozinho. Mas no final do filme, o diretor prepara uma surpresa ao espectador.
Tudo pode dar certo é recheado de referências e críticas às sociedades impregnadas de religião e convenções. Sabemos que Woody Allen é mestre em retratar crises conjugais (Manhattan, Maridos e Esposas, Crimes e Pecados). A atitude de Bóris, de largar um casamento estável – mas monótono -, é uma crítica aos que se contentam com uma vida segundo os padrões estabelecidos. Demonstra também que uma vida solitária e feliz é perfeitamente possível. Antes isso era um tabu.
A sensação que se tem ao ver o filme é que “tudo [em relacionamentos] pode dar certo”: um casal convencional, uma amor a três, um amor jovem ou uma relação entre iguais. Mas se isso não ocorrer, que se busque a felicidade – mesmo que sozinho. Além do aspecto conjugal, o diretor também aborda a facilidade com que se produz um “mito” no mundo atual, valendo-se da mídia e do marketing. A velha mãe da garota se torna uma celebridade fashion em poucos dias. Qualquer semelhança com personagens vazias fabricadas por nossas TVs não é mera coincidência. Woody Allen quer, sim, zombar dessa espetacularização promovida pelo mainstream. Bóris rejeita tudo isso, critica a padronização estética nivelada por baixo. Bóris não bate em crianças; bate na mediocridade. A criança imbecil é uma metáfora da sociedade estéril.
Woody Allen conseguiu fazer um filme que não cabe em si mesmo. Temos de assisti-lo várias vezes, tamanha a riqueza de detalhes. Cada diálogo é uma pérola, uma referência, um chiste. Caetano Veloso, em entrevista recente, disse que Woody Allen é um cineasta pequeno, limitado e repetitivo. Parece que o diretor ouviu a declaração do baiano lá no norte. Será que o cantor vai sustentar a sua tese depois de Tudo pode dar certo?
20 de jul. de 2010
Ricardo Reis era um bon vivant
Há muito mais do que uma simples classificação ou designação histórica do romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. O autor, como em vários de seus livros, nos brinda com um humor sutil, kafkiano, em várias passagens. Quando o humor não está na situação em si, está presente na própria forma de narrar, na escolha das palavras.
No livro, o médico e poeta Ricardo Reis é um fujão: quando se esboça uma revolução ou comoção social, ele pula pra outra cidade ou país. Fugindo da ditadura Vargas, ele, que vivera 17 anos no Brasil, retorna a Lisboa. Ricardo Reis é um bom vivant. Preguiçoso. Parece querer resolver uma série de pendências para voltar a trabalhar como médico. Mas é pura indolência. Passa os dias se arrumando impecavelmente, se barbeando, para passear pela cidade, ler jornais nos cafés, ir ao teatro.
Ricardo Reis é também uma figura picaresca e atrapalhada. Envolve-se com Lídia, a empregada do hotel onde está hospedado. Mas também envolve-se com Marcenda, uma jovem hóspede que tem um dos braços paralisado. Escapa daqui, escapa dali, Ricardo Reis consegue “administrar” as duas mulheres. Como se não bastasse, recebe frequentemente a visita do fantasma Fernando Pessoa – na maioria das vezes ele aparece de forma inesperada, em momentos inoportunos. Interessante é que Ricardo Reis o trata com impaciência e até com certo desdém.
Há passagens memoráveis no romance que evidenciam o humor sutil de Saramago. Uma das melhores é o momento em que Lídia comunica a Ricardo Reis que está esperando um filho seu. Em um parágrafo, Saramago mostra como o poeta, no seu íntimo, pensa uma coisa e responde outra. E comete o disparate de aproveitar a situação para agarrar a empregada. A narrativa é impagável:
“(...) e aqui não se pode ver mais do que esta mulher calada e séria, criada de profissão, solteira, Lídia, com o seio e o ventre descobertos (...) Não ficou zangado comigo? Que idéia a tua. Porque motivo iria eu zangar-me... E estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis. Meti-me em grande sorrilho, pensa ele, se ela não faz aborto, fico para aqui com um filho às costas (...)
Beijou-a, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão. Mas o corpo animal cura pouco destas sutilezas, daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis, gemendo e suspirando. Não tem importância, agora é que é aproveitar, o menino já está feito."
14 de jul. de 2010
1948 = 1984
Há sempre o que aprender, a cada momento, a cada leitura, a cada filme. Foi nos extras do filme 1984 que descobri que o ano que dá título ao livro não foi mero exercício futurístico de George Orwell. Foi apenas uma inversão dos números que compõem o ano em que o livro foi escrito: de 1948 para 1984. Este foi o último livro escrito por Orwell.
“1984-Livro” é completo e equilibrado. Não deixa brechas. É considerado um dos livros mais bem-acabados do século passado. Winston Smith tenta fugir das garras do Grande Irmão, uma figura fictícia criada pelo sistema (totalitário) para vigiar as pessoas em todos os lugares, públicos e privados. Os olhos do Grande Irmão estão nas teletelas – uma espécie de tv de plasma – fixadas nas paredes das residências. Smith conspira com sua amante Julia. É traído por um dissimulado amigo e cai nas garras do sistema. Sofre na pele a na mente as consequências de se rebelar contra o que seria um Stálin ou um Hitler, se tivessem obtido êxito. Pena que programetes de TV tenham banalizado o livro de Orwell. Os olhos do Grande Irmão contemporâneo recaem sobre a nossa excessiva exposição - na internet, facebooks, orkuts, etc - e, principalmente, sobre a proliferação de câmeras em locais públicos, pós-11 de setembro.
“1984-Filme” (de Michael Redford) foi relançado, agora em DVD. É tão bom quanto o livro. Indispensável! Melhor assisti-lo após a leitura do livro, como complemento. Foi lançado justamente em 1984. Os olhos do Grande Irmão no filme são penetrantes e ameaçadores. Uma perfeita retratação de um ditador. O cenário é totalmente à Tarkowski. É como assistir ao Stalker (1979). O drama de Winston no filme é menor do que no livro. Mas ainda assim, arrasador. Difícil não se revoltar com a opressão, com a manipulação de um sistema totalitário perfeito, bem planejado.
1) O diretor MICHAEL RADFORD, assim como Orwell, nasceu na Índia em 1946. Filmou também o Carteiro e o Poeta (1984).
2)GEORGE ORWELL (1903-1950) nasceu na Índia e morreu em Londres. Foi militante socialista. Escreveu também A Revolução dos Bichos (1945).
6 de jul. de 2010
A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos
O que se poderia esperar de um filme cujo título original é Tulitikkutehtann Tytto? Estranheza, claro. E é tudo o que encontramos, à primeira vista, ao assistirmos ao primoroso (na tradução para o português) A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos. Trata-se, para quem ainda não viu, de um filme finlandês recém-lançado em DVD, do diretor Aki Kaurismaki - o mesmo do excelente O Homem sem Passado. A Garota da Fábrica é estranho por abordar a frieza e a indiferença nas relações humanas na periferia de Helsinque. É um filme duro, seco, com pouquíssimos diálogos. Em pouco mais de uma hora, Kaurismaki narra a história de uma operária de uma fábrica de caixas de fósforos, cuja rotina das máquinas faz de sua vida uma eterna repetição de dias indiferentes.
A garota (não há nomes no filme) garante o sustento dos pais com seu mísero salário. A mãe, uma dona de casa cansada e maltrapilha; o pai, desempregado (ou aposentado), passa os dias fumando num sofá velho, vendo TV. Eles são exigentes; aguardam ansiosamente o dinheiro do trabalho da filha. Ela é um “objeto produtivo” dentro de casa.
Cansada da rotina, a garota comete uma “desmedida” ao sair para tomar um drinque em um pub decadente, onde é flertada por um empresário que a convida para dançar. Os dois vivem um rápido e compulsivo romance naquela noite.
Esperançosa por uma guinada na vida, a garota apresenta o empresário aos pais, que o recebem friamente. Um possível casamento poderia livrá-la da arrogância do pai, talvez um emprego melhor, uma casa mais confortável, uma vida digna. Mas, em um jantar a dois em um restaurante requintado, num clima aparentemente romântico, o empresário a decepciona: “se acredita que há algo entre nós dois, está muito enganada. Nada me encanta tão pouco quanto o seu amor. Agora, deixe-me”. Ela sai imediatamente da mesa, na primeira garfada.
Quando tudo parecia que seria apenas uma desilusão, a garota descobre que está grávida do empresário. Resolve, então, escrever-lhe uma carta pedindo apoio. Dias depois, ela recebe um envelope como resposta: um cheque para bancar um aborto.
A Garota da Fábrica é um retrato de um país cujo clima frio e cinzento parece se interiorizar nas pessoas. O filme mostra o lado melancólico de Helsinque: casas pequenas (quase favelas); na mesa, pão duro, sopa e água; televisores antigos. Não há humor.
O diretor Aki Kaurismaki tem a simplicidade e os silêncios de um Jim Jarmusch. Um pouco de Kieslowski, talvez. Seus filmes retratam o pálido cotidiano de Helsinque de maneira poética. Parte desta secura é atribuída à ausência de trilha sonora em seus filmes. A Garota da Fábrica é um drama impiedoso, sem concessões. O filme explora os limites humanos diante de sucessivas decepções. Quais seriam as conseqüências de uma cena em que a garota entra em uma loja e compra veneno para ratos?
Título: A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos
Direção: Aki Kaurismaki
País: Finlândia / Suécia
Ano: 1990
25 de mai. de 2010
Os quase-livros
Nunca mais ouvi falar do tal escritor. Mas já se passaram alguns anos que eu, na sala de espera da dra. Cristiane, dentista, li em uma velha revista cuja capa fora extraída, uma matéria sobre a descoberta de vários manuscritos de um escritor húngaro, chamado Kovács. Não consegui decorar seu sobrenome e não me perdôo até hoje por não tê-lo anotado em algum papel. Kovács teria morrido no ano de 1919.
Foram descobertos em um baú antigo (daqueles empoeirados, que se vê em filmes como O Nome da Rosa), nos porões de uma mansão, vários cadernos manuscritos que, à primeira vista, comporiam cinco ou seis romances. Diante da descoberta, a Biblioteca Pública de Budapeste se comprometeu a financiar a contratação de professores de literatura e de vários outros especialistas para analisar os manuscritos.
Nunca mais tive notícia sobre o destino dos trabalhos dos especialistas, e muito menos das obras. Mas um detalhe me chamou a atenção. Um respeitado professor de literatura que teve um primeiro contato com os manuscritos, declarou que Kovács se tratava de um escritor excepcional, cuja obra rivalizaria – quiçá superaria – com a de Franz Kafka. Segundo o especialista, o conteúdo daqueles originais, se descobertos e publicados nos anos 20 do século passado, mudaria o rumo de toda a literatura ocidental.
Há exemplos de livros que quase tiveram o mesmo destino, ou seja, quase não existiram (ou só existiram) por obra de terceiros. O exemplo clássico é o de Max Brod, amigo de Kafka, que teria cometido uma “boa desobediência” (para os amantes da literatura) ao não destruir os manuscritos, de anotações ou até de livros prontos, que o escritor julgava de qualidade duvidosa(!).
Lembro de ter lido em algum lugar que o escritor João Ubaldo Ribeiro, depois de um esforço hercúleo, escrevendo à máquina (em papel ofício e cópia carbono) o calhamaço Viva o Povo Brasileiro, teria rejeitado(!) o livro. Num ato de repulsa ou de perfeccionismo, o escritor jogou as mais de mil páginas datilografadas em uma caixa e deixou-a abandonada em um canto da casa, sujeita a infiltrações e traças. O romance teria sido arrancado à força de suas mãos - literalmente roubado - pelo editor, que o publicou.
Mais recentemente, vimos a quase “não existência” do livro de Nabokov, O Original de Laura. Escrito a lápis em fichas catalográficas, quando o escritor estava internado na Suíça para se tratar de uma infecção, o romance quase não existiu por duas vezes. Na primeira, Nabokov teria orientado a sua esposa a destruir as fichas – coisa que ela não fez. Após a morte desta, ficou nas mãos do filho Dmitri a publicação (ou a destruição) dos manuscritos. Decadente, necessitando de dinheiro para pagar despesas com a saúde debilitada, o filho mandou para o prelo as fichinhas.
O livro 2666, do chileno Roberto Bolaño, teve situação diferente. Houve também, como no caso do João Ubaldo, desobediência por parte do editor. O escritor, sabendo que morreria em decorrência de problemas hepáticos, determinou que o 2666 fosse publicado em cinco partes distintas, em volumes separados, a fim de sustentar a família por um bom tempo. O editor ignorou a vontade de Bolaño e mandou um “tijolo” para as livrarias.
Há casos também de futura inexistência de livros. Mistérios que atiçam desejos de leitores e do famélico marketing das editoras. É o caso do escritor J.D. Salinger, autor do livro O Apanhador no Campo de Centeio, morto em janeiro último. Há especulações de todo gênero; uma das quais a de que o escritor teria deixado, no cofre de sua casa, algumas obras prontinhas para serem publicadas aos poucos, garantido a grana para até a quinta geração dos Salinger. Mas o mistério persiste. Sabe-se que o escritor teria, assim como Raduan Nassar, abandonado a literatura de vez para desfrutar os afazeres de um dia simples. E se, ao abrirem o cofre de Salinger, um vazio escuro e melancólico ecoar lá de dentro?
Obras e, por conseqüência, escritores podem não terem existido por inúmeros motivos. Um empregado de alguma casa que tenha jogado no lixo, inadvertidamente, caixas e mais caixas de manuscritos. Um amigo que, ao contrário de Max Brod, tenha realmente acatado a ordem do escritor e inutilizado sua obra. Esposas ou maridos em crise conjugal que, num rompante, queimaram cadernos do parceiro. Editores que simplesmente rejeitaram obras-primas. Há mil motivos.
Sabemos e temos acesso apenas ao que existe, óbvio. Dante, Cervantes, Balzac, Kafka, Dostoiévski, Proust, Flaubert existiram porque sobreviveram à ação dos “destruidores”, além do inegável talento que tinham, claro. Mas... e se eles não tivessem sido descobertos? O destino da literatura moderna, por exemplo, tão influenciada por Kafka, seria o mesmo? Quantos escritores não “aconteceram”, por inúmeros motivos, mas existiram de fato e escreveram obras importantes que não chegaram até nós?
A dra. Cristiane nunca fez sequer um minúsculo reparo em meus dentes. Tenho ojeriza a revistas sem capa e ensebadas. Detesto sala de espera. A possibilidade de se encontrar uma revista que aborde literatura – e, ainda, húngara!? – em consultórios é remotíssima. Vários Kóvacs poderiam ter existido e, quem sabe, mudariam os rumos da literatura e da sociedade – para melhor ou pior – se tivessem sido publicados. Kafka poderia ter sido superado.
Seria como se, guardadas as devidas proporções, a humanidade não tivesse moldado a razão como ela é (segundo a linha evolutiva dos pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, etc.), mas seguido um outro caminho que não o da racionalidade como a conhecemos e praticamos. Literariamente, somos o que somos devido ao que descobrimos, voluntária ou involuntariamente. Tornamo-nos uma “possibilidade” entre várias. Poderíamos ter sido bem melhores ou bem piores, de acordo com aquilo que sepultamos.
3 de mar. de 2010
23 de dez. de 2009
“Enquanto Agonizo”, de William Faulkner: uma travessia desafiadora ao leitor contemporâneo
Sempre tive medo da cara de carrasco do escritor americano William Faulkner (1897-1962), pois ele me lembra o Stálin. Suas pálpebras cerradas, impiedosas; um olhar sarcástico de ditador. Encarar Faulkner (como escritor) era um desafio duplo: apagar sua imagem de ditador e adentrar em seu universo estranho, seco e intransponível, na visão de muitos críticos. Lá fui eu, com o lápis na mão, digladiar com o Faulkner. Agonizar?
A leitura de “Enquanto agonizo” (1930) é uma experiência ímpar, indispensável para escritores – principalmente pela aula de narrativa – e para os amantes da boa literatura. O livro foi considerado um dos cem melhores romances do século XX. É um delicioso exercício de paciência desvendar o mosaico criado por Faulkner.
Tenho como método de leitura o que eu chamo de “entrar no clima” do livro: leio com vagar as primeiras 40 ou 50 páginas, anotando os nomes dos personagens, seu grau de parentesco, os detalhes da sua personalidade. Após esta etapa, a leitura flui com mais rapidez. Isto muitas vezes me causa transtorno, pois certos romances têm dezenas de personagens. Nestes, atenho-me apenas às figuras mais importantes e constantes. Com a prática a gente vai peneirando a essência. Lembro-me do trabalho que me causou a leitura de “Cem Anos de Solidão”, do Garcia Marques, com aquela infinidade de personagens, em suas várias gerações.
Ocorre que o livro de Faulkner, nas primeiras 30, 40 páginas não tinha “dado liga”. Tive de começar tudo de novo, sem remorso. Livros enigmáticos e complexos são estimulantes. Muitas vezes o desvendamento, a travessia importa mais do que a própria história. “Enquanto agonizo” alia as duas coisas: história e narrativa são impecáveis. Eis uma prática cada vez mais rara na contemporaneidade: o debruçar persistente sobre livros e textos mais herméticos. De clique em clique, de site em site, a velocidade contemporânea vicia e retrai a paciência (será que o pensamento também?). Os constantes debates sobre e-books e (o fim dos) livros desviam do foco o cerne da questão: o ato de ler. A prática da leitura contemplativa e concentrada sim, talvez corra perigo. Já falei isso aqui: talvez a nova geração prefira as imagens e os games à leitura.
Com o perdão da digressão, voltemos. O título “Enquanto agonizo” vem das palavras, ou melhor, do pensamento da mãe (doente terminal), que está no leito de morte olhando fixamente pela janela, enquanto escuta o filho mais velho trabalhar cuidadosamente na feitura do caixão. A família (os Bundren) é pobríssima. Seria fácil se a história fosse narrada assim, clara e linearmente. Mas o leitor tem de suar. A narrativa inicia-se abruptamente num clímax, como se fosse um corte “daqui pra diante”, mas aos poucos vão se revelando as cicatrizes do passado. As idiossincrasias, as agruras e rancores dos personagens vão surgindo aos poucos. Alguém lamenta que uma mulher (ainda não se sabe quem) desistira da compra de uns bolos que foram encomendados. Um dinheiro mísero, mas dado como certo, que auxiliaria aquela família no enterro da mãe. O livro começa assim.
À primeira vista o romance parece uma narrativa epistolar, mas são relatos isolados; intui-se pelo vigor das falas: são vozes individuais (versões) de cada personagem a ressoar nos ouvidos do leitor. Cada capítulo leva o nome de um personagem – a maior parte é narrada pelos filhos. A personalidade de cada um é delineada pelo “outro”. Ninguém fala de si próprio; todos são submetidos à criação ora condescendente ora impiedosa do outro. Ninguém tem “direito de defesa”. Faulkner confronta a inquietante relação entre aquilo que “achamos que somos” e o que o “outro vê em nós”.
O grande desafio inicial é identificar a relação entre os narradores. Mas tudo se aclara até a metade do livro, quando já podemos enxergar uma família composta por pai, mãe e cinco filhos – quatro homens e uma mulher (adolescente). Todos narram, mas Faulkner dá a alguns a oportunidade de falar mais do que outros. Descobre-se que o filho mais velho é o verdadeiro líder, pois o pai está desmoralizado pelo passado, pelo desleixo no relacionamento com a mãe; ele é praticamente considerado culpado por sua morte. Curiosamente é o pai quem leva a cabo a promessa de realizar o enterro na cidade de Jefferson, a 70 quilômetros de casa, como desejara a matriarca. Há também um filho que é mais protegido pela mãe - por sua vez o mais temperamental e incongruente. O outro irmão é ainda garoto - nota-se no seu precário discurso. E a filha, adolescente, vive um drama à parte ao esconder uma gravidez indesejada.
Identificados os atores da trama, o foco passa a ser a viagem, o transporte do corpo até Jefferson. A família toda, mesmo sem recursos financeiros, parte em uma carroça caindo aos pedaços e enfrentando intempéries: pontes caindo, cavalos arrastados pela correnteza, incêndios. Como se não bastasse, o filho mais velho quebra a perna, abrindo uma ferida que apodrece com o passar do tempo. O leitor imagina, com o primor da narrativa, o odor da fissura de cor azulada na sua perna (que será amputada após o enterro); imagina também o cheiro do cadáver da mãe, que está há sete dias naquele caixão artesanal.
A viagem põe à prova as agruras da família Bundren ao lidar com a “diferença”. O livro nos faz pensar na possibilidade de uma “convivência comum”, mesmo diante das adversidades e dos limites de cada personagem. Os Bundren seguem vida, mesmo aos trancos e barrancos. “Enquanto agonizo” é um belo retrato da condição dos excluídos, dos que viviam à margem da aristocracia americana no início do século passado. Assim como nos grandes clássicos da literatura que versam sobre a “condição humana”, as semelhanças (idiossincráticas, morais e psicológicas) dos personagens do livro com os que vivem hoje ao nosso redor não são casuais, nem mera coincidência. O “modo de ser” contemporâneo, a maneira de encarar as diferenças é que tem sido distinta. Ao nos depararmos com a arrogância, com certos privilégios, maledicências e imoralidades – só para ficarmos nesses exemplos - tendemos ao isolamento. Talvez isso seja até saudável.
Willian Faulkner não faz concessão ao entretenimento. Há uma sensação de alívio ao terminar a leitura. Não pelo fim do livro, mas pelo trágico da situação, pela penúria psicológica dos Bundren. Em “Enquanto agonizo” não há redenção. O escritor não abandona o leitor após a narrativa. Fico pensando por dias em como se comportarão os irmãos diante da ausência da mãe. Certamente o drama e a pobreza continuarão, pois não há perspectiva de superação material e psicológica dos personagens. Sinto que a travessia da família é uma metáfora da travessia do próprio livro. Uma travessia que desafia a superficialidade e o imediatismo contemporâneo.
(P.S.: Pressinto que a cara de Faulkner sempre vai me assombrar; mas sua narrativa não mais.)
2 de dez. de 2009
Anticristo: sexo como culpa
Sexo e culpa. Ou culpa pelo sexo? O filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, tem esses dois ingredientes como linha mestra. Classificá-lo como “chocante”, “exagerado”, “apelativo”, como vêm fazendo os críticos, é analisar o filme de forma reducionista, ignorando a riqueza de suas intricadas relações, enigmas e símbolos.
Enquanto faz amor de forma intensa, um casal ignora os perigos da autonomia do filho, que consegue descer do berço, abrir a janela e se jogar do alto de um prédio – em uma cena antológica, diga-se de passagem. Com a morte da criança, a mãe entra em estado de luto profundo, tendendo à irreversibilidade e beirando o suicídio. O marido, terapeuta, propõe um tratamento – na verdade um jogo – para tirá-la do abismo. A proposta do esposo é trabalhar com algo que a remetesse ao “medo”, algo que amedrontasse a esposa (uma lembrança, objeto, lugar, etc.). Ela, então, sugere se isolar com o marido em uma casa no meio de uma floresta, onde estivera recentemente com o filho. De forma crescente, o terror começa a tomar conta do casal.
Vários acontecimentos envolvendo elementos simbólicos atormentam a vida dos dois. Contrapondo ao jogo proposto pelo marido, a esposa resgata, no sótão da casa, um material de estudo sobre o que se teria denominado “feminicídio” – inclusive com cadernos, livros e recortes de jornais, contendo agressões e mutilações a mulheres. Somados a isso, há vários símbolos enigmáticos: um animal aparece frequentemente com um filhote recém-nascido, ainda preso ao útero, se arrastando pelo chão (a mãe que não abandona o filho?); um corvo é apedrejado furiosamente pelo marido, mas nunca morre; raízes se entrelaçam aos corpos do casal, enquanto fazem sexo ao pé de uma árvore gigantesca.
O grande mérito de Lars Von Trier é trabalhar com esses ingredientes de forma quase onírica. Os símbolos estão sempre voltando, são recorrentes, como se fossem um aviso – a constância dos símbolos nos faz lembrar os filmes de David Lynch. Por vários momentos o espectador tem a sensação de que aquela imersão sufocante na floresta vai terminar em um corte de cena, no qual o casal pula ofegante da cama, voltando à “segurança urbana”, saindo do “flashback”. Mas a floresta é real, e é chamada de “satanás” (anticristo?). O tratamento proposto pelo marido não surte efeito. A esposa, então, alia-se à floresta, incorporando-a de forma selvagem para se vingar do marido (e seu ineficiente método “anti-luto”). Animais, ventos, plantas e árvores se unem a ela para eliminar “o mal”.
O terror de Lars Von Trier tem nuances poéticas devido à maneira como é tratado; pela sua opção estética. O diretor certamente abandonou o “Dogma 95” - movimento que o projetou nos anos 90, quando realizou filmes de baixo orçamento, mas com extrema inventividade. Sua experiência com efeitos especiais em “Anticristo” é deslumbrante. As cenas inicial e final são afins, carregam um tom azulado de rara beleza, ao som de “Lascia Ch’io Pianga”, ópera de Haendel. As imagens da floresta são onduladas e estonteantes, dando o tom do terror para quem se arrisca a entrar na mata fechada. A ausência de luz (à Tarkowski - a quem o filme é dedicado), mesmo durante o dia, conduz o espectador a uma noite interminável. E há também uma pitada “trash”, nas cenas de mutilações e agressões físicas.
A incursão de Lars Von Trier pelo suspense o reconduz aos trilhos da originalidade dos seus primeiros filmes, e o redime do fraco “O Grande Chefe”(2006). Em “Os Idiotas”(1998), o diretor trata de forma pitoresca e absurda da banalização social. Em “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005), a crueldade humana ganha uma roupagem teatral, cuja força está nos diálogos. Em termos de proximidade, se fizermos algumas concessões, “Anticristo” se aproxima mais do “Dançando no Escuro”(2000), pela dureza impiedosa das situações vividas pelas mulheres nos dois filmes. Se neste, o mote é uma sociedade aniquiladora, que rouba e explora uma inocente, transformando-a em culpada, em “Anticristo” o foco gira em torno da sexualidade, da perda irrecuperável, da vingança.
O filme “Anticristo” é inquietante não por aquilo que choca, mas pelos seus momentos herméticos e perturbadores. Os enigmas não são entregues gratuitamente. Os símbolos recorrentes nos jogam num labirinto de difícil solução. Ninguém sai incólume do cinema. A incursão do espectador naquela floresta é ludibriante e leva-o a pensar por dias nas possibilidades aventadas – ou deixadas em aberto. Muitas insinuações ficarão sem um desfecho (tão solicitado por alguns críticos).
O cinema (como arte) fascina pelas suas desmedidas, pela criatividade, pela busca de soluções estéticas incomuns em meio a tudo o que já foi produzido. Achar uma “brecha original” é tarefa para diretores ousados como Lars Von Trier. De que vale um final “resolvido” depois de uma caminhada como a de “Anticristo”?
13 de nov. de 2009
Murilo Rubião e o chocolate
- Me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
- Moço, oh! Moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
- Está bem moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento...”
Este pequeno trecho, que vale por uns cem livros de Dan Brown, é o começo do conto “Teleco, o coelhinho”, do escritor Murilo Rubião - um dos precursores do realismo fantástico no Brasil.
Por sugestão do amigo Jason, vou relatar um encontro que tive com Rubião, em meados dos anos 70, quando eu era ainda criança. O meu avô Daniel, apesar de não ser uma celebridade, era uma pessoa de certa forma bem relacionada em vários setores da sociedade belo-horizontina. Funcionário público “faz tudo” (estamos nos anos 60 e 70), tinha livre trânsito entre políticos, médicos, advogados, escritores, atores, e na imprensa em geral. Descendente de portugueses (tinha até sotaque d’além-mar), era amante da política. Autodidata, trocava idéias e aconselhava um caminhão de gente que vinha a nossa casa.
Sempre tive uma certa afinidade (ou cumplicidade) com meu avô – sou o primeiro neto. Não sei explicar exatamente o porquê. Talvez pela infinidade de coisas interessantes que ele me mostrava, ou pela sua verve, ou pela sua indignação com o que achava incorreto. O fato é que eu, vez ou outra, estava ao seu lado, a tiracolo. Eu sempre fazendo aquelas perguntas complicadas de criança, e ele sempre me respondendo pacientemente.
Calhou de irmos visitar o Murilo Rubião, de quem meu avô Daniel era amigo – acho que trabalharam juntos na Imprensa Oficial. Eu nem sabia de quem se tratava, muito menos de sua importância. Tive um grande choque, com momentos de temor, quando entramos no apartamento e eu me deparei com aquele senhor de cara fechada, óculos de grossa armação e corpo rotundo. Um apartamento escuro e silencioso, com livros, móveis antigos e algumas plantas. Via-se que morava ali um senhor solitário, centrado, sério e exigente.
Sempre morei em casa, mas naquele momento tive vontade de morar em apartamento, mas que fosse igual ao do Rubião, uma “caixa em penumbra”, onde o isolamento fosse uma proteção do mundo externo. O apartamento do Murilo era misterioso. Passava-me uma sensação de “exigência de privacidade” – de que o escritor nunca abrira mão.
Um pouco de descontração, pelo menos para mim, foi quando o Murilo nos convidou para ir até a cozinha. Ele abriu um armário, acima da pia, e retirou uma enorme caixa preta, abarrotada de chocolates “Diamante Negro”. Abriu a caixa e disse para eu me servir. Diante da seriedade daquele “monstro” à minha frente, peguei um chocolate, timidamente. Na verdade eu queria a caixa inteira; não aquela – pois eu temia o Rubião -, queria uma caixa de chocolates igual àquela, preta, cheia de “Diamantes Negros”. Ele disse para eu tirar mais um, mas pela boa educação, recusei. Ele então, percebendo a minha timidez e o brilho nos meus olhos, tirou mais um “Diamante” e colocou-o na minha mão.
Não comi na hora nenhum dos dois; guardei-os no bolso. Voltamos à sala-escritório e a conversa entre ele e meu avô durou pelo menos umas duas horas. Fiquei sentado, ignorado em uma cadeira antiga, em silêncio, durante todo o período. Não havia um brinquedo para me distrair naquele apartamento lúgubre. Ficava olhando os móveis, a máquina de escrever, os papéis, alguns quadros.
Hoje eu não conseguiria identificar a rua ou bairro onde ficava o apartamento do Murilo Rubião. O escritor morreu em 1991. Não sei se ele e meu avô eram grandes amigos, mas percebi uma ponta de tristeza em meu avô Daniel, muito bem disfarçada – ele tinha a arte de absorver tristezas, só para proteger os seus. Meu avô morreu em 1995 - em minha memória, restaram os lugares e amigos que visitamos. Foi quando me dei conta da importância do Rubião e passei a ler seus contos com admiração. Fiquei sabendo que ele foi um escritor perfeccionista ao extremo – chegava a escrever apenas uma frase por dia, bem lapidada.
Não vi o Murilo sorrir naquele encontro com meu avô. Talvez ele tivesse o mau humor irônico e surreal do coelho Teleco. Mas toda vez que vejo um “Diamante Negro”, lembro do Murilo Rubião.
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